Autor: Pedro Cleto

Cinco comics que fazem parte da minha vida

Quem acompanha – mesmo que ocasionalmente – o que vou escrevendo, sabe que os comics de super-heróis nunca foram o meu género de eleição. Mesmo assim, deixo de seguida uma lista de cinco histórias sem as quais eu não seria o mesmo leitor.

Da minha infância/juventude, tenho memórias esparsas das revistas de super-heróis que li. Tenho uma vaga ideia de revistas brasileiras (da Ebal?) a preto e branco e grande formato — Marvel ou DC? —  vistas em casa da minha madrinha; recordo uma ou duas edições do Homem-Aranha, da Agência Portuguesa de Revistas, que tive; lembro uns formatinhos (emprestados) deste mesmo herói; evoco duas edições brasileiras de melhor qualidade – Superman e Lanterna Verde/Arqueiro Verde, que ainda estão algures aqui por casa – compradas num pacote-mistério ((Nos anos 1980/1990, em Portugal, havia sobras de revistas de BD que não eram destruídas; eram vendidas mais tarde, em envelopes surpresa, com exemplares sortidos.)).

E, no que aos super-heróis diz respeito, no formato papel, pouco mais…

Até que, em 1983, pela primeira vez, uma BD de super-heróis marcou-me profundamente, sendo mesmo uma das que “me fizeram dar o salto da BD infanto-juvenil de aventura e humor para uma outra de temática mais adulta” ((Citando o que escrevi há dias, a propósito das 50 edições de BD que fizeram de mim o leitor que sou hoje, em 50 Anos, 50 Edições: (II) 1983-1985)).

Era a primeira parte de Snowbirds don’t fly, uma aventura da dupla Green Lantern/Green Arrow, em que este último descobre que Speedy é um drogado. Lida nas páginas do Mundo de Aventuras – revista em que fiz a minha formação aos quadradinhos – mas nunca concluída, deixou-me durante (muitos) anos suspenso do seu desfecho.

Teria ainda de esperar pelo final dos anos 80, quando vi na montra da Bertrand, no Centro Comercial Brasília, uma edição que me chamou a atenção. “O primeiro impacto surgiu pelo aspecto diferente”: era a edição brasileira, formato comic, da Editora Abril do primeiro volume de The Dark Night Returns. Depois, “o traço e a fabulosa história de Miller fizeram o resto…” ((In 50 Anos, 50 Edições: (III) 1986-1993))

Foi a partir daí que comecei a prestar mais atenção ao género e, mesmo não me tendo tornado um grande leitor de comics, vou tentando acompanhar o que de mais interessante – do meu ponto de vista… — vai acontecendo.

É por estas razões – e outras mais – que estas duas histórias estão na lista de cinco comics de super-heróis que fazem parte da minha vida e sem os quais eu não seria o mesmo leitor.

Green Lantern/Green Arrow: Snowbirds don’t fly

De Denny O’Neil e Neal Adams. Datada da década de 1970, está incluída num arco mais largo que representam um dos primeiros e maiores expoentes de realismo que os comics de super-heróis já assumiram. Com os Estados Unidos vergados ao pesadelo da guerra do Vietname, e com a sombra dos assassinatos de John Keneddy e Martin Luther King, O’Neil e Adams levam os seus heróis numa viagem por uma América profunda, repleta de contrastes e de podres, bem longe dos ideais de igualdade do sonho americano e das divisões absolutas bem/mal ou certo/errado com que Green Lantern via o seu mundo.

Batman: The Dark Night Returns

Batman Dark Knight Returns
De Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley. O regresso de Batman após dez anos reformado, para fazer face à corrupção crescente e a um bando que aterroriza a sua sempre querida Gotham, num espelho do desencanto americano com a governação Reagan, mostrado como uma caricatura nesta obra.
Uma história dura, violenta, explosiva, narrada a um ritmo absorvente, pautado pela cadência da informação televisiva que vai conduzindo o relato e mantendo o leitor a par das diferentes evoluções e pontuada por momentos fortes – como o combate com o líder mutante na lixeira ou o confronto Batman/Superman.
Se a violência nela mostrada pode hoje ser considerada normal, quando The Dark Night Returns surgiu nunca tinha sido visto nada assim nos comics e estes nunca mais foram os mesmos.

Daredevil: Born Again

Daredevil: Born Again
De Frank Miller e David Mazzucchelli. Uma das raras bandas desenhadas que comprei nos formatinhos brasileiros, é uma obra complexa e muito estruturada, assente na exposição controlada de emoções e com uma violência invisível mas latente, rara em histórias de super-heróis, devida ao tom extremamente realista que exibe.
Born Again é o relato da queda de Daredevil/Matt Murdock, perdendo namorada, amigos, emprego, identidade ou posição social, devido a um plano de vingança de Kingpin, mas vai bem mais além disso, transfigurando-se na narrativa da redenção do herói, mais forte e mais capaz, numa notável declaração de humanidade e de confiança no melhor do ser humano.
Frank Miller – que passei a acompanhar depois de The Dark Night Returns — constrói uma narrativa forte e densa, com intervenientes marcantes, bem acompanhado no desenho e na planificação por David Mazzucchelli que explana o tom sombrio da narrativa e a escuridão que Murdock foi obrigado a atravessar.

Superman: For All Seasons

De Jeph Loeb e Tim Sale. Esta mini-série seduziu-me primeiro pelo traço límpido e fino de Tim Sale e pelas cores claras e quentes que o servem – mais próximos da BD franco-belga que é a minha praia…?
Depois – mas mais importante – veio a história de Jeph Loeb. O recontar da origem de Superman, num relato que oscila entre este e o pacato e crédulo Clark Kent, na passagem de Smalville para Metropolis, através das relações fortes que estabeleceu com os que lhe eram mais próximos, num percurso iniciático em que foi descobrindo as suas forças mas, também, principalmente, as suas fraquezas e as suas limitações, para aprender a superá-las, antes de se transformar no maior herói da Terra.

Marvels

De Kurt Busiek e Alex Ross. O relato do aparecimento dos primeiros super-heróis Marvel, vistos tanto como “maravilhas” – no trocadilho com o original “marvels” – quanto como ameaças para os cidadãos comuns, pelo olhar apurado e competente de um fotógrafo rendido aos novos seres.
Narrativa humanizada das histórias de super-heróis tradicionais, balizada por momentos fortes da história dos comics Marvel, é extremamente valorizada pelo traço híper-realista de Alex Ross que confere outro impacto e força à bem urdida história de Kurt Busiek.


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Jorge Coelho, desenhador de vilões

Se já não é novidade haver desenhadores portugueses a desenhar para a Marvel, continua a ser notícia de cada vez que preparam um novo trabalho. O caso mais recente é Jorge Coelho, que está a desenhar uma história de Loki, Agent of Asgard.

Este não é, no entanto, o primeiro trabalho de Coelho para a Marvel, uma meta que muitos desenhadores da sua geração perseguem.

Por isso, em entrevista para a preparação deste texto, Jorge Coelho revelou que anda “a mostrar portfólios há já uns anos” até que, “finalmente em Novembro de 2012, no Festival de Lucca, Itália, C.B. Cebulski”, caça-talentos da casa das Ideias o viu e achou que o seu traço “estava no ponto para trabalhar para a Marvel”. “Passaram-se alguns meses” de expectativa, entretanto desenhou “Polarity, para a BOOM! Studios,” e, por fim, foi-lhe proposto “o projecto Venom” que aceitou “sem piscar os olhos”.

Venom #40
Venom #40
Venom #40
Venom #40.

“O projecto Venon” era Mania, um arco em três partes escrito por Cullen Bunn, que foi publicado na revista do simbionte, entre os números #40 e #42. Nele foi introduzido o simbionte feminino Mania, que deu nome à história.

Apesar de declarar que não está “completamente satisfeito” com o seu trabalho em Venon, em parte devido a “alguma pressão auto-imposta que deve ter contribuído para tal”, acredita que o resultado influenciou o actual convite para participar em Loki, Agent of Asgard.

Será, então, Jorge Coelho um desenhador com queda para vilões ou será simples coincidência? É o próprio que diz que Loki a seguir a Venon talvez se deva ao facto de “gostar de carregar em negros expressivos” com os quais consegue “transmitir uma atmosfera escura”.

A estes dois projectos, de que tem “gostado bastante”, aponta apenas um senão: “pecam por pequeninos”. E confessa que gostaria, “no futuro, de ter projectos maiores, de habitar títulos e personagens durante mais tempo”.

Sobre aquele que agora o ocupa, menciona que “Loki, Agent of Asgard é uma volta gira ao personagem Loki, depois do Ragnarok, o Apocalipse da mitologia nórdica. Loki morreu e reincarnou no seu próprio corpo, pós-adolescente, em busca de redenção… ou então é apenas mais um dos seus esquemas, quem sabe?”

A história em que está a trabalhar, é “uma espécie de intervalo dentro do principal arco narrativo do título”, e será publicada “em Setembro”, nos números #6 e #7 da revista.

Ainda não pode adiantar muito sobre a narrativa em si, pois apenas recebeu “metade do script”. Neste momento, está a “procurar referências e a tirar as dúvidas normais que surgem durante o processo”. Depois, vai “apresentar layouts que serão comentados” e de seguida ocupar-se-á da arte-final. O processo conclui-se com a “digitalização, uns toques finais em computador e o envio dos ficheiros”. Em suma: “é um processo trabalhoso, mas simples”.

Como sempre que trabalha “tanto em banda desenhada como em ilustração editorial e publicitária, durante a produção” tem sempre de “apresentar esboços e receber de volta alterações. Serem muitas ou poucas depende da equipa e das particularidades do projecto e é mais ou menos imprevisível”.

Se trabalhar para a Marvel dá sempre outra visibilidade, esta é apenas mais uma etapa de um percurso já com alguns anos que, segundo Jorge Coelho “tem sido natural, como desenrolar um novelo. Um trabalho puxa outro, reforça o portfólio e irá trazer melhor trabalho”.

Membro do The Lisbon Studio, costuma comentar com os seus colegas que “publicar não é difícil. Ser pago para tal é onde a porca torce o rabo”. E, no seu trajecto internacional, também tem tido experiências dessas.

O primeiro projecto de maior visibilidade em que participou foi Forgetless, para a Image Comics, uma mini-série em cinco números. Tudo começou com “um repto de Nick Spencer para um conceito de três histórias diferentes que se fundem no último episódio, numa festa” que deu nome à narrativa. “Como a Image Comics, trabalha apenas com percentagem de royalties e o projecto não foi um sucesso de vendas, não rendeu monetariamente”. Mas, neste meio, não é apenas o dinheiro que conta e Coelho assume que Forgetless, já compilado num TPB, “foi o primeiro projecto a dar exposição geral” ao seu trabalho, “o que versus o nada anterior foi um progresso”.

Polarity #1
Polarity #1.

Apesar disso, seguiu-se “um hiato, não caiu nenhum trabalho” e acabou por aceitar o convite “para participar no colectivo online Brand New Nostalgia” para o qual teve de executar “cerca de 40 ilustrações em desafios semanais”, que serviu para renovar o seu portfólio e lhe proporcionou uma exposição acrescida, da qual, “certamente, nasceu o contacto de Eric Harburn, da BOOM! Studios”. Dos sucessivos contactos e com pranchas de teste acabou “por conquistar Polarity”, um argumento de Max Bemis, desenvolvido ao longo de quatro comics entre Fevereiro e Maio de 2013, entretanto reunidos num único volume.

Sobre Polarity, Jorge Coelho assegura que “A ideia era muito interessante: Tim um hipster desconsolado descobre que as suas crises bipolares despertaram super-poderes; depois, tudo o que se sucede é estranho”. Algo que lhe agradou, pois gosta “de estranho”. E continua: “o escritor, vocalista da banda Say Anything, trouxe também algum do seu público musical para a banda desenhada, o que contribuiu também para ser um projecto diferente e a todos os níveis bem-sucedido”. Em termos pessoais acredita que conseguiu explorar o seu trabalho “em direcções diferentes do que estava habituado”, o que foi decisivo para “fazer a ponte entre o registo mais europeu e o americano”.

Zero #8.
Zero #8.

Entre Venon, datado de Novembro 2013/Janeiro de 2014, e o actual Loki, Agent de Asgard, “do qual ainda não há autorização para revelar imagens” ainda desenhou “o número #10 de Suicide Risk”, escrito por Mike Carey, de novo para a BOOM! Studios – série da qual Filipe Andrade desenhou recentemente o número #14 – e o oitavo Zero, num regresso à Image, um argumento de Ales Kot que considera, “em termos criativos, talvez o projecto mais recompensador até à data…”

E termina, reforçando uma ideia: “Tudo natural, como desenrolar um novelo”.


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Filipe Andrade regressa

O desenhador português Filipe Andrade, foi escolhido pela Marvel para desenhar Figment, uma banda desenhada integrada no universo Disney Kingdoms. O primeiro número desta mini-série estará à venda nos Estados Unidos já no próximo dia 4 de Junho (chega à Mundo Fantasma pouco depois).

Este é mais um passo na criação de projectos conjuntos entre a Marvel e a Disney, na sequência da compra da editora por esta última, algo que, com certeza, veremos cada vez mais nos próximos tempos e com uma amplitude que muitos não imaginariam, com cruzamentos entre os vários universos, a exemplo do que aconteceu no verão passado com a participação dos Avengers num episódio televisivo de Phineas e Pherb.

Mas não é esse o tema deste texto, pois as ambições de Figment, projecto comum da Marvel e da Walt Disney Imagineering, são outras.

Mini-série de cinco episódios desenhada por Filipe Andrade, com capas de John Tyler Christopher (ficando as variantes a cargo de Andy Gaskill e Tom Morris), foi escrita por Jim Zubkavich, criador de Skull-Kickers (Image Comics), Samurai Jack (IDW) ou Amanda Waller (DC Comics), este último com o também português André Coelho. As personagens principais são Dreamfinder, um excêntrico inventor e intrépido explorador, e o dragão por ele criado, que dá nome à série, cujas origens vão ser agora conhecidas. Refira-se, a propósito, que ambos são mascotes bastante populares do percurso Journey into Imagination, do Epcot® Theme Park, no Walt Disney World, onde naturalmente virão a estar à venda exemplares desta banda desenhada, o que lhe confere uma visibilidade acrescida.

Em declarações exclusivas para a escrita deste texto, Filipe Andrade revelou que Figment “surgiu entre conversas e projectos que foram acontecendo entre o final do ano passado e o início deste, com o editor William Rosemann”, entre os quais se conta nomeadamente a mini-série Seekers of the Weard (2014), integrada no universo Disney Kingdoms e igualmente desenhada por Andrade.

Concretizado o convite, foi aceite de imediato, mesmo sendo à partida “um livro para todas as idades”, o que implicou que o desenhador se tivesse de adaptar pois a sua praia “não é propriamente esta”.

Na verdade, conforme específica, “a história é menos vertiginosa (que os habituais comics de super-heróis), sem grandes momentos de acção ou quebras de narrativa. É um conto fantástico muito Disney”. Tudo isto obrigou-o a fazer alguns ajustes no seu estilo habitual mas, “mais do que o traço” que surge claramente mais caricatural e de certo modo próximo do desenho animado, foi “o layout de página” que implicou maiores cedências, pois este “acaba por ser mais clássico.” E remata: “mais teatro do que cinema”!

Sendo óbvio que as personagens principais “já estavam mais ou menos definidas”, Filipe teve de se empenhar especialmente na criação “do ambiente da história e das personagens novas” e reconhece que “essa tem sido a melhor parte: criar o mundo onde os personagens se envolvem e desenvolvem”, inexistente até agora.

A história começa com “um cientista, chamado Blair, com muita imaginação mas pouco disciplinado, que trabalha na Academia de Ciências de Londres, em 1910”, no período pós-revolução industrial. Como é habitual nestes casos, “um dia uma das suas experiências explode e chama a atenção do chairman da instituição que o passa a manter debaixo de olho”.

Apesar disso, consegue reconstruí-la “e quando liga novamente a máquina faz gerar um produto da sua imaginação: Figment, uma espécie de dinossauro bebé, de cor púrpura”. Este revelar-se-á muito curioso e corajoso e com ele os leitores serão levados a locais fantásticos com habitantes estranhos, desafios inesperados e grandes sonhos, pois a explosão tem outras consequências, nomeadamente a criação de “uma passagem para um mundo alternativo, quente e steampunk, ao qual acabarão por ir parar” e onde se desenrolará a maior parte da acção, como será possível constatar a partir de Junho.

Filipe Andrade

Filipe Andrade

Filipe Andrade

Filipe Andrade

Filipe Andrade

Filipe Andrade

Filipe Andrade, que trabalha para a editora desde 2010, reconhece que este “é um projecto menos Marvel e mais à imagem Disney”. Mas salienta “o facto de ser um arco de história com princípio, meio e fim, o que é muito importante, pois os leitores têm oportunidade de ver e ler a história toda com a mesma arte”. No caso, a sua, tal como aconteceu em 2011 com a adaptação da novela de Edgar Rice Burroughs que esteve na origem do filme John Carter de Marte.

Sobre o trabalho do desenhador luso, o argumentista Jim Zubkavich afirmou em entrevista que ele “conseguiu captar e transmitir o estilo steampunk do livro juntamente com a inocência de Figment”, acrescentando que “o seu traço revela a personalidade e a emoção que ele aplica no trabalho”.

Filipe Andrade, recorde-se, é o desenhador português com mais obras feitas para a Marvel, desde que em 2010 foi seleccionado por C. B. Cebulski na sequência de uma análise de portfólios.

Para além dos já citados John Carter: A Princess of Mars (2011), com argumento de Roger Langridge, e Seekers of the Weard (2014), escrita por Brandon Seifert, foi igualmente o responsável pelo grafismo de uma outra mini-série, Onslaught Unleashed (2011), escrita por Sean McKeever e protagonizada conjuntamente pelos Young Allies (com Nomad, Spider-Girl, Gravity, Toro e Firestar) e também os Secret Avengers (Captain America, Black Widow, Moon Knight, Beast, Ant-man e Sharon Carter).

Para além disso, o traço personalizado de Filipe Andrade, anguloso e esguio, assumidamente avesso à manutenção das proporções do corpo humano, em nome da dinâmica das cenas, deixou a sua marca igualmente nos comics #9 a #12 da fase recente da Captain Marvel, escrita por Kelly Sue DeConnick e Christopher Sebella, e em vários one-shots de Iron Man, Nomad, X-23 ou X-Men.

Mas, com os super-heróis de lado de momento, Filipe Andrade acabou “de começar o terceiro livro desta mini-série” pelo que está concentrado em concluir este projecto. Apesar disso, revela que “em breve haverá novidades” na sua carreira “sobre as quais, no entanto, ainda é cedo para falar”.

As imagens utilizadas são do blogue de Filipe Andrade.


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Ignorância Lusa

Gibrat
Le Vol du Corbeau, pormenor de ilustração original inédita “Jeanne et Cécile”, 2012.

Ao falar de banda desenhada, é possível confundir “capa” e “prancha”?

Embora a resposta devesse ser um rotundo “não”, a realidade — portuguesa, recente — fornece uma resposta discrepante.

Explicações já a seguir…

Estou ligado à banda desenhada há muitos anos. Quase há meio século como leitor interessado, há cerca de três décadas de forma activa como divulgador, organizador e/ou comissário de exposições, editor…

Reconheço, sem dificuldade nem qualquer tipo de concessão, que, ao longo destes últimos 30 anos, a banda desenhada, fora do círculo dos eus habituais leitores/consumidores/divulgadores ganhou um novo estatuto: tem outro reconhecimento, outro mediatismo, outra relevância.

Se para muitos – mesmo para alguns daqueles que deveriam ter outra abertura mental – ainda continua a ser “os macaquinhos para os miúdos” e pouco mais, hoje em dia – muito por culpa da sua mediatização graças ao cinema? – é regularmente notícia – embora nem sempre por aqueles motivos que eu mais gostaria…

Um dos casos mais recentes, foi a venda de originais de banda desenhada organizado pela leiloeira britânica Christie’s, no início deste mês de Abril. Acontecimento que ganhou mais relevância por ser o primeiro organizado por uma das mais famosas casas de leilões da Europa.

Mesmo assim, o evento, a montante, passou praticamente despercebido em Portugal. Depois, o seu resultado – vendas brutas de quase quatro milhões de euros e vários recordes — levaram a que toda a comunicação social, das cadeias televisivas aos mais humildes pasquins, noticiassem que a “…capa original do álbum Tintim no Tibete desenhada por Hergé foi vendida hoje em leilão em Paris por 289.500 euros, um preço recorde para um desenho a lápis do criador belga…”

Hergé
Tintin Au Tibet, Casterman, 1960. Lápis sobre papel, prancha 54.

“E qual o problema?”, perguntarão muitos dos leitores deste texto, que também foram leitores/ouvintes da notícia. Um pormenor, da maior importância: o original vendido, não era a capa a lápis de Tintin no Tibete, mas sim o esboço da prancha 54 do mesmo álbum – como aliás facilmente se percebia pela imagem reproduzida até por muitos dos meios de comunicação social que fizeram a divulgação.

Perante isto, não sei o que é de lamentar mais: a forma alarve e seguidista – económica… — como se reproduzem comunicados de uma agência informativa sem qualquer cuidado de verificação da informação veiculada, se a ignorância/falta de profissionalismo desta última ao traduzir – do francês? do inglês? – para português o comunicado oficial da Christie’s. Na Agência Lusa que deturpou, desculpem, divulgou a notícia não houve ninguém que olhasse para o desenho? Em tantas rádios, televisões, jornais, ninguém soube distinguir uma capa de uma prancha?

E passa-se isto num tempo em que a banda desenhada até é ensinada (recorrentemente) nas escolas portuguesas – embora reduzida à sua forma mais básica e estéril (até para seu esvaziamento e para afastar dela potenciais leitores?), a um conjunto de (apenas) pranchas, tiras, vinhetas e balões… Parece que há que rever os programas escolares e incluir neles o conceito de “capa” e o que o distingue do de “prancha”… Poderá ser útil dentro de 20 ou 30 anos…

Numa ajustada comparação, esta notícia faz lembrar as “traduções” – leiam “adaptações livres”, por favor – que noutros tempos – os anos 30, 40, 50 do século passado, época de ouro do jornalismo infanto-juvenil em Portugal – se faziam das bandas desenhadas estrangeiras neste país, naquelas que ficaram – justamente – como revistas de referência – Papagaio, Mosquito, Mundo de Aventuras, Cavaleiro Andante… – para várias gerações.

Faltou, no presente caso, é verdade, o “aportuguesamento” dos nomes dos intervenientes: Tintin podia ter passado a Timóteo ou Tibúrcio, Hergé dava um bom Hermenegildo e se o Tibete tivesse sido transferido para a Serra da Estrela, imagino as capas de jornais e notícias de abertura dos telejornais que a venda da tal “capa” teria dado…

Franquin
Sprirou et Fantasio, Hors-Série L’Heritage, Dupuis 1976. Tinta da china sobre papel, capa.
Uderzo
Astérix Le Devin, Dargaud, 1972. Tinta da china sobre papel, capa.

A finalizar, a título de curiosidade, para além do esboço da prancha 54 de Tintin no Tibete – não, não é de mais frisá-lo… — as principais vendas do primeiro leilão de originais de BD organizado pela Christie’s, em cooperação com a galeria parisiense Daniel Maghen, que até registou uma afluência recorde que ultrapassou largamente a lotação do hotel de luxo onde foi realizado,  foram a capa original – e neste caso é mesmo a capa! – de Astérix: O Adivinho (193.500€) e uma prancha de Astérix na Córsega (145.500€), ambas da autoria de Uderzo, e a capa – sim, outra capa! – de Franquin para uma edição especial de Spirou et L’Heritage (157.000€).

Valores bem interessantes atingiram igualmente uma prancha de La Macumba du Gringo (55.000€), de Pratt, e uma ilustração de Gibrat (67.500€), naquela que foi a maior venda de originais de BD de sempre na Europa, onde se registaram recordes absolutos para obras de Delaby, Cosey, Lepage, Lacombe, Juillard, Manara, Miralles, Frank Pé, Rochette e Rosinski.

Como apontamento final  – mas que, a exemplo do leilão em si, mostra bem o interesse crescente que os originais de banda desenhada despertam, enquanto investimento seguro (e bom negócio também para uma leiloeira com a fama da Christie’s – refira-se que uma vinheta – sim, uma vinheta! — de Blake e Mortimer: A Marca Amarela, de Edgar Pierre Jacobs, foi vendida por quase 10 mil euros, enquanto duas vinhetas – exacto, dois rectângulos medindo à volta de 7 cm x 10 cm… — da versão original em tiras, publicada no Le Soir, de Tintin e as Sete Bolas de Cristal, foram licitadas por 17 mil e 22 mil euros.

Jack Kirby
Fantastic Four #53, Marvel, 1966. Tinta da china sobre papel, página 20. Tinta de Joe Sinnott, balonagem de Artie Simek.

Por razões geográficas (?) apesar de o leilão ter tido participação mundial pela internet e pelo telefone, um original de Jack Kirby e uma história completa do Spirit, de Will Eisner, não encontraram comprador.

Destaque: Jacques de Loustal, “Lumières du Jour”. Ilustração original “Careless Love”, utilizada num cartaz das edições Art Moderne, 1987.


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