Categoria: Banda Desenhada

Mais cinco comics que fazem parte da minha vida

32 Stories

Eye of the Beholder

Palestine Special

Depois de no mês passado ter destacado cinco bandas desenhadas de super-heróis enquanto obras que mudaram e moldaram os meus gostos e expectativas, este mês vou de alguma forma repetir a dose, mas evocando cinco comics independentes ((Independentes das duas grandes editoras de comics de super-heróis, a Marvel e a DC Comics, ou, se preferirem, alternativos – a esses mesmos comics mais comerciais de super-heróis…)) (que também) fazem parte da minha vida.

Num plano diferente, sem dúvida, porque menos populares/mediáticos/(re)conhecidos do que os comics de super-heróis que referi então – e que, sem qualquer dúvida, são consensuais dentro do género — mas igualmente importantes por terem contribuído para alargar os meus horizontes enquanto leitor de quadradinhos.

Antes de o fazer, necessito de um breve preâmbulo, para evocar a minha participação na organização e produção do Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto, ao longo de todas as suas edições, pois isso permitiu-me não só conhecer pessoalmente alguns dos autores que, a diferentes níveis, me marcaram – Prado, Davodeau, Schuiten, Peeters, Trondheim, Baru, Dupuy, Berberian… — enquanto leitor de quadradinhos, mas também descobrir nomes que desconhecia – de que nunca tinha sequer ouvido falar — e que apresentavam outro tipo de registos, de propostas, de desafios, que se revelaram também estimulantes.

Propostas que, confesso, não me marcaram tanto como os “Cinco comics de super-heróis que fazem parte da minha vida”, pois a maior parte deles dificilmente fariam parte das 20, 30, 50 melhores obras que já li. Mas propostas que, sem dúvida, contribuíram para que eu me atrevesse a descobrir algumas dessas 20, 30, 50 melhores obras que já li.

Isso foi possível graças à combinação de gostos e universos de quem organizava o SIBDP, em especial a partir da sua sexta edição. Foi dessa forma que encontrei – e nalguns casos passei a seguir – nomes na época ainda pouco conhecidos, mas que se viriam a afirmar como fundamentais na criação aos quadradinhos das últimas três ou quatro décadas. Dave McKean, Ed Brubaker, Joe Sacco ou Seth são os mais significativos que me ocorrem, ao correr dos dedos pelo teclado, entre os que passaram pelo Mercado Ferreira Borges, no Porto, que acolhia o SIBDP.

Mas, sem mais demoras, passemos então à mão cheia de obras que quero propor hoje, apresentadas sem qualquer critério de ordenação.

Optic Nerve

De Adrian Tomine. Comic aperiódico, com registos, quase sempre curtos, entre o autobiográfico e a ficção social – se posso chamar-lhe assim -, que revelam um autor – que é tímido mas – atento e capaz de explanar aos quadradinhos pormenores quotidianos, dramas íntimos, emoções ou formas de estar em que – paradoxalmente – revela tanto de si.

Eye of the Beholder

De Peter Kuper. Um desafio ao olhar e à mente do leitor. Quatro vinhetas numa página que são resolvidas/unidas/explicadas pela vinheta final, impressa no verso das outras quatro. Uma forma inteligente de mostrar como o nosso olhar, distorcido pela nossa formação/cultura/posição social interpreta – tantas vezes – mal as coisas simples do dia-a-dia.

Visitations

De Scott Morse. Um relato contido, pausado, em que cada frase é para ser lida, meditada, sentida como cada personagem a sente, e no qual nos é mostrado que Deus – afinal? – existe. Nós é que não o queremos – sabemos? – ver…

The left gang bank

De Jason. Uma história ambientada em Paris, França, no início da década de 1920, protagonizada por F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Ezra Pound, James Joyce… Artistas (e) boémios, invejosos uns dos outros, amantes de longas conversas, belas mulheres e bom vinho. Criadores de excepção, cujo génio e méritos ficam expressos nas obras que criam… em banda desenhada, a arte que impera neste universo paralelo perfeitamente identificável.

A meio do relato, uma mudança de agulha transforma esta metáfora gráfica num policial puro, que parte de um assalto a um banco levado a cabo com brilhantismo pelo quarteto, mas condenado pelas sucessivas traições que o leitor – rendido e de surpresa em surpresa – irá descobrir.

Hicksville

De Dylan Horrocks. Um crítico de uma conceituada revista de comics, vai a Hicksville em busca do sucessor de Jack “King” Kirby. Uma vez chegado, constata surpreso que lá se encontram os números mais raros da história dos comics, os fanzines mais obscuros, as edições menos divulgadas, os leitores mais conhecedores… Porque em Hicksville todos lêem, coleccionam, vivem ou desenham comics. Pelo amor à arte, não suportando quando esta se transforma em indústria.

E se Hicksville é – também – uma crítica feroz ao mundo dos comics mainstream, onde os grandes autores fazem carreira à custa do trabalho de dezenas de desenhadores anónimos, mais do que isso é uma obra sobre a paixão pelos comics, que mostra a vida real como um buraco negro quando comparada com o mundo ideal da BD.

Palestine

De Joe Sacco. Pela minha participação na sua edição em português ((Co-edição Mundo Fantasma/MaisBD/Devir, com o apoio da Bedeteca de Lisboa,  em 2004)). Pela forma – então — inovadora e interessante como aborda o conflito israelo-palestiniano. Pelo tom – pioneiro – de reportagem — desenhada – que a obra assume, baseada nos dois meses que o autor passou na Palestina, no Inverno de 1991-92, a recolher dados e a dialogar com os seus habitantes, vivendo como eles. O resultado é um relato forte – subjectivo, claro – mas humano, sincero, pungente, por vezes chocante, sobre o que o ódio pode fazer ao ser humano. E do que o ser humano pode fazer, devido ao ódio.

Imagem independente

A Image Comics é uma editora americana de comics e novelas gráficas criada em 1992 com o intuito de possibilitar aos criadores um meio de publicar os seus trabalhos sem perderem os direitos autorias sobre as personagens e histórias que criavam, como era prática na época, e ainda é, na Marvel Comics e na DC Comics.

Fundada originalmente por sete artistas vindos da Marvel: Todd McFarlane, Jim Lee, Rob Liefeld, Erik Larsen, Whilce Portacio, Marc Silvestri e Jim Valentino, todos os primeiros títulos da Image foram sucessos comerciais imediatos, tornando-se desde então numa das maiores editoras de comics do EUA, com um catálogo repleto de bons autores e grandes títulos mas também com o que de pior se podia encontrar nos comics de super-heróis nos anos de 1990.

Image comics antigos

Neste ponto a Image conseguiu subverter e generalizar um estilo de narrativa visual cuja origem atribuo a Neal Adams, em particular na sua Continuity Comics, a editora que criou em 1984 e que esteve activa até 1994. Escrevo subverter porque muitos dos desenhadores publicados pela Image, ou melhor, pelos diversos selos editoriais que a editora agregava, pareciam desenhar em papel vegetal sobre as pranchas de Adams, eliminando cenários e o que de real ainda continham os seus desenhos e acentuando a musculatura dos personagens masculinos, o “erotismo” das personagens femininas, o tamanho das armas e o nível de violência e sangue derramado, sendo Rob Liefeld um mestre nestas “inovações”.

Enquanto escrevia este artigo reli alguns dos títulos que fizeram mais sucesso: Spawn, WildC.A.T.S., Supreme ou Youngblood, tarefa essa que se tornou rapidamente entediante tal é a confusão visual e a pouca qualidade dos argumentos, sendo esta uma das críticas recorrentes na época. As várias polémicas geradas inicialmente pela gestão duvidosa da editora ou o uso agressivo de técnicas marketing e publicidade, que se tornaram na época standards da indústria, principalmente nas capas artilhadas com diversos truques visuais: hologramas, pop-up’s, capas variantes ou que brilham no escuro, também não ajudaram ao bom nome da editora, sendo esta acusada de apenas publicar lixo visual para adolescentes.

No fundo os sete rebeldes apenas queriam o legítimo retorno financeiro que as suas criações poderiam gerar e não apenas serem pagos à página como acontecia na Marvel, apesar dos títulos onde participavam venderem milhões de exemplares, batendo mesmo recordes — McFarlane em Spider-Man, Jim Lee em X-Men ou Rob Liefeld em X-Force — e os royalties serem quase inexistentes.

Mas com o tempo, e com o fim da musculada década de 90, a Image foi-se consolidando como editora e passou a ser considerada por diversos autores, já estabelecidos ou em início de carreira, como um meio viável e de reconhecida qualidade para publicar as suas criações mais pessoais, entre os quais Hellshock por Jae Lee, Astro City por Kurt Busiek, Brent Anderson e Alex Ross, Bone por Jeff Smith, Kabuki por David Mack, o universo 1963 escrito por Alan Moore ou The Walking Dead por Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard, este um conhecido e reconhecido sucesso comercial e artístico ainda em publicação.

O ano de 2008 seria um ponto de viragem para a editora ao contratarem Eric Stephenson para o cargo de Publisher. O discurso que proferiu em Fevereiro último no encontro em Atalanta dos membros da ComicsPro, uma associação de retalhistas de comics, é um bom exemplo da sua visão sobre a indústria e sobre o passado recente, o presente e o futuro da Image, onde um dos objectivos principais é diversificar as temáticas e estilos dos títulos publicados para alcançar outros públicos pouco ou nada habituados a lerem comics, e isto não com produtos derivados de séries de televisão ou filmes mas sim através da qualidade narrativa e gráfica das histórias.

Satellite Sam #9 de Matt Fraction e Howard Chaykin
Satellite Sam #9 de Matt Fraction e Howard Chaykin.

Neste últimos anos, e como consequência desta abertura, uma série significativa de bons autores começou a publicar através da Image e desses destaco Ed Brubaker (poderia bem ser Howard Chaykin com o seu Black Kiss ou Satellite Sam com Matt Fraction, mas Chaykin merece um texto só a ele dedicado) e os seus mais recentes títulos: Fatale com Sean Phillips e Velvet com Steve Epting, ambos exemplarmente coloridos por Bettie Breitweiser.

Brubaker, agraciado já por cinco vezes como Melhor Argumentista nos prémios Harvey e Eisner, é um dos meus escritores favoritos e um dos melhores a escrever séries negras e de espionagem, a reinventar super-heróis, ancorando-os em cenários credíveis e baseados na nossa realidade ou a criar personagens com passados misteriosos e conturbados. Não admira por isso que Brubaker atribua a sua vontade precoce de escrever histórias ao facto de ter acompanhado a sua mãe a encontros dos AA enquanto criança.

Fatale #23 de Ed Brubaker e Sean Philips
Fatale #23 de Ed Brubaker e Sean Philips.

Fatale é uma série negra com contornos sobrenaturais que relata a vida de Josephine, uma mulher fatal, aparentemente imortal — a narrativa decorre entre os anos de 1950 e 1990 — com a capacidade involuntária de manipular a vontade dos homens, ficando estes obcecados por ela. Sem surpresa, essas relações geralmente acabam mal até porque um sinistro culto que idolatra deuses cósmicos lovecraftianos persegue a Jo.

Publicada desde 2012, Fatale teve várias nomeações em 2013 nos prémios Eisner é a quarta série escrita por Brubaker e desenhada pelo talentoso Sean Phillips editada pela Image, depois de Sleeper, Criminal e Incógnito. A série terminou em Julho último com o número 24 mas a equipa criativa já iniciou em Agosto a publicação de mais um projecto promissor: The Fade Out, uma história policial negra — claro — que tem como cenário a Hollywood dos anos de 1940.

Velvet é a mais recente colaboração de Brubaker com Steve Epting depois das suas aclamadas passagens por Captain America, onde devolveram ao herói o clima de espionagem e intriga internacional dos anos 70, em particular na fase curta mas seminal de Jim Steranko. E aqui essa influência volta-se a sentir mas agora centrada numa personagem sem super poderes e considerada por Brubaker como uma das suas criações favoritas: Velvet Templeton, a assistente pessoal do Director da Arc-7, uma agência secreta de espiões, que se vê envolvida numa teia de mistérios, a começar pelo seu próprio passado.

Velvet #6 de Ed Brubaker e Steve Epting
Velvet #6 de Ed Brubaker e Steve Epting.

Steve Epting, influenciado por Jim Holdaway (Modesty Blaise), Al Williamson (Secret Agent X-9) ou Stan Drake (Kelly Green), desenha Velvet como uma mulher de aspecto clássico, elegante e atraente mas duro, a fazer lembrar a curta interpretação, para mim definitiva, de Natasha Romanova, a Black Widow, de Paul Gulacy (Bizarre Adventures nº 25, Marvel, 1981, argumento de Ralph Macchio) ou mesmo a Contessa Valentina Allegra de la Fontaine. Epting tem aqui neste argumento de Brubaker os elementos ideais para canalizar todo o seu talento ainda pouco reconhecido.

Se perderam os primeiros números, ambas as séries encontram-se disponíveis também em TPB pelo que recomendo vivamente a sua leitura.


André Azevedo escreve habitualmente no blogue A Garagem.

Estantes #4

Estantes Mário Venda Nova

Estantes Mário Venda Nova

Estantes Mário Venda Nova

Estas são as minhas estantes carregadas de banda desenhada, de graphic novels e bastantes compilações… Aqui estão alguns dos meus livros favoritos, com quem tenho uma relação especial e que em determinado momento me marcaram por várias razões. Começo logo pelos vários livros de Dave McKean, o Violent Cases, o Signal to Noise (ambos em colaboração com Neil Gaiman) e o Cages. São livros fabulosos onde a arte de McKean está bem patente e marcada, adoro o Violent Cases. Ah e falta-me o Mr Punch… depois destes passo para outro livro que faz parte do meu imaginário: Market Day de James Sturn, um clássico! Uma história sobre um homem que faz tapetes e que os vende no mercado mas que vai perdendo clientes para as grandes lojas que vendem tapetes feitos em série… uma belíssima estória!
Por aqui também há livros com as grandes sagas de super-heróis: The Phoenix Saga dos X-Men, DareDevil de Frank Miller, Batman: The Dark Knight Returns (também de Miller), e a saga da Elektra. Mas há mais… muito mais.
Noutro lado graphic novels, entre muitos a fabulosa Sandman: The Dream Hunters de Neil Gaiman e Yoshitaka Amano, numa adaptação de um conto tradicional japonês que está no meu top dez de banda desenhada! Outro top dez: The Arkham Asylum de Mckean, ilustração de topo e uma estória brutal do Barman, negra e sinistra. Seria injusto esquecer V for Vendetta e os Watchmen, ambos já adaptados (com mais ou menos sucesso) o cinema, os dois saídos da pena de Alan Moore. Ou o fabuloso Blankets de Craig Thompson, ou o Curses de Kevin Huizenga, e o não menos fabuloso Tell Me Dark, uma estória sinistra de amor e libertação (outro meu top dez).
Noutros poisos a mangá japonesa, nomeadamente o Lone Wolf and Cub, uma estória baseada na vida do samurai Miyamoto Musashi, autor do famoso livro de conduta samurai The Book of Five Rings. Também lá estão os seis volumes do Akira (cerca de 400 páginas cada um…) que adorei e devorei em outras tantas noites, e o mui famoso Ghost in the Shell. Mas para mim a pérola é sem duvida é o Naussicaä of the Valley of Wind do célebre Miyazaki, que nos deu filmes como a Princesa Mononoke e a Viagem de Chihiro (talvez o meu filme de animaçao favorito ao lado do Fantasia de Walt Disney).
Termino com dois de Joe Sacco, totalmente apropriados aos dias de hoje: War’s End e Palestine.
Como se pode perceber há aqui todo um universo de banda desenhada, um mundo de aventuras ao dispor da imaginação, um universo alternativo que nos permite escapar ao dia-a-dia, entrar pelo sonho e dentro e alargar horizontes. A BD tem um universo próprio que no seu melhor cruza a literatura com a ilustração e que nos transporta ao melhor que cada uma nos dá.