Categoria: Banda Desenhada

Os (quase) inqualificáveis Guardians of the Galaxy

Guardians of the Galaxy

Com muitos anos como leitor de BD – quase tantos quantos tenho de vida – já vi – e li – as mais surpreendentes – e (quase) inqualificáveis – propostas, das mais variadas proveniências. Guardians of the Galaxy é um dos exemplos mais recentes.

Guardians of the Galaxy

Exemplo recente, entenda-se, em termos de leitura pessoal, pois o conceito dos Guardians of the Galaxy e os seus protagonistas – apesar de muitos o desconhecerem – foram criados em 1969, por Arnold Drake ((Arnold Drake (1924-2007), argumentista norte-americano que trabalhou para a DC Comics e a Marvel, em especial nas décadas de 1960 e 1970.

Na primeira, foi co-criador de Doom Patrol (em 1963, com Bruno Premiani e Murray Boltinoff), tendo escrito histórias de Batman e Plastic Man, e participado nas revistas The Adventures of Bob Hope, The Adventures of Jerry Lewis ou House of Mistery, entre muitas outras.

Na Marvel, para além de ter criado Deadman (em 1967, com Carmine Infantino), teve passagens pelo Captain Marvel e pelos X-Men.)) e Gene Colan ((Eugene Jules Colan (1926-2011), desenhador norte-americano que tem no currículo dezenas de histórias para a DC Comics e a Marvel.

Com passagem pelos maiores super-heróis das duas editoras, os seus trabalhos mais marcantes foram Daredevil (entre 1966 e 1979), Howard The Duck (1976-1979) e The Tomb of Dracula (1972-1979). Foi igualmente co-criador de Falcon (com Stan Lee, em 1969), futuro parceiro do Captain América e na época o primeiro super-herói afro-americano.)).

A estreia aconteceu em Marvel Super-Heroes #18 ((Em Janeiro de 1969.)). Na altura a acção situava-se no século XXXI, um futuro longínquo da terra 691, uma linha narrativa alternativa da Marvel, e os Guardians of the Galaxy originais uniam-se para combaterem a irmandade Badoon, uma raça extraterrestre que queria conquistar os planetas do sistema solar.

Os seus membros eram o major Vance Astro (ou Major Victory), um astronauta do século XX que tinha estado em animação suspensa, Martinex T’Naga, um ser cristalino do planeta Pluto, Captain Charlie-27, soldado de Júpiter, Youndu Odonta, uma selvagem nobre azul de Centauri-IV, todos exemplares únicos das respectivas raças. Starhawk, Aleta e Nikki uniram-se aos guardiões durante os primeiros confrontos, mas a verdade é que as aparições esporádicas do grupo ao longo dos anos seguintes, até final da década de 1970, mesmo em revistas como Thor ou The Avengers, não conseguiram impô-los junto dos leitores, pelo que não surpreende que não haja grande memória deles.

No início de 1990 foi ensaiado um regresso do grupo, em título próprio, então escrito e desenhado por Jim Valentino ((Jim Valentino (1952-), argumentista e desenhador norte-americano, entrou no mundo dos quadradinhos na década de 1970, com comic autobiográficos, iniciando um percurso com passagens pela revista Cerebrus (de David Sim), onde publicou Normalmen, e pela Renegade Press, antes de integrar a Marvel Comics, de onde sairia em 1992 para se tornar um dos fundadores da Image Comics.)), que seria substituído por Michael Gallagher ((O norte-americano Michael Gallagher, para além dos Guardians of the Galaxy, escreveu histórias da linha What If?, tendo igualmente trabalhado em edições de Alf, Sonic e na revista MAD.)), a partir do #29, que ficaria responsável pela revista até ao seu encerramento, após 62 edições.

Fechado este breve resumo da ‘pré-História’ dos Guardians of the Galaxy, entramos no presente e no grupo que hoje – um momento que poderá ser breve e efémero como todos sabemos – é um dos mais populares e (re)conhecidos da Marvel.

Guardians of the Galaxy

O princípio de um grupo de heróis cósmicos – de que todos certamente conseguiríamos citar outros exemplos – foi retomado por Dan Abnett ((Dan Abnett (1965-), argumentista britânico escreveu histórias de Doctor Who e para a revista 2000 A.D. (Vector 13 e Sinister Dexter, entre muitos outros), antes de ir para os Estados Unidos onde assinou para a Marvel, relatos de Punisher ou a saga Annihilation.

Trabalhou igualmente em diversos títulos da DC Comics e da Wildstorm.)) e Andy Lanning ((Andy Lanning, argumentista e desenhador, igualmente britânico tal como Dan Abnett, fez com ele boa parte do seu percurso, tendo em comum títulos como Punisher, Nova, Batman ou Star Trek: Voyager.))  em 2008, com a composição que agora conhecemos: Peter Quill, o filho do senhor das estrelas, Gamora, filha adoptiva de Thanos e a mais letal assassina conhecida, Drax, um criminoso hiperviolento cego pelo desejo de vingança, Rocket Raccoon, um guaxinim antropomórfico caçador de recompensas e a árvore humanóide Groot, e ainda Adam Warlock, Phyla-Vell e Mantis.

Uma combinação altamente improvável, de que Abnett e Lanning tiraram pouco partido – digo eu – numa série de narrativas pesadas e até confusas, que certamente me teriam afastado em definitivo de novas leituras, se fosse nelas que eu me tivesse iniciado nas sagas dos Guardians of the Galaxy.

Mas não foi; conheci-os na sua fase mais recente, na abordagem de Brian Michael Bendis ((Brian Michael Bendis (1967-) Argumentista norte-americano que se destacou com Jinx, Sam and Twitch ou Powers, para a Image Comics.

Actualmente na Marvel, já passou de forma marcante e quase sempre memorável por praticamente todos os grandes títulos da editora, num percurso que se iniciou com Ultimate Spider-Man (2000).)), bem diferente e com muito mais humor e acção, ingredientes com os quais conseguiu tirar maior partido do cocktail imaginado por Abnett e Lanning.

A sua transferência para o nosso tempo, uma das opções acertadas daquela dupla, permite a sua interacção com algumas das franquias actualmente mais populares da Marvel – Avengers, Ângela… – e assim potenciar a sua mediatização.

Depois, combinou nas doses certas as qualidades (?) e características de cada um dos integrantes do grupo: inteligência, sensualidade, força bruta, humor e… decoração vegetal (?!). Dessa forma, os relatos dinâmicos, plenos de acção, com combates épicos e situações extremas são recorrentemente pontuados pelo humor mordaz, certeiro – e às vezes mesmo brejeiro – de Rocket Raccoon, pelo tom monocórdico da única frase que Groot profere – I am Groot… – pelas hormonas em ebulição de Peter Quill e Gamora – mesmo que possam buscar outros parceiros pontuais -, contributos que servem para aligeirar e ao mesmo tempo expandir o tom da série – o que claramente faltava na versão de 2008.

Dessa forma, transformou os Guardians of the Galaxy como que numa família disfuncional, composta por desajustados cósmicos que, apesar de todas as diferenças, choques, empatia ou falta dela e conflitos, conseguem levar a bom termos as sucessivas missões em que devem salvar o mundo., com uma proximidade – já por muitos assinalada – ao modelo – deixem-me chamar assim – que fez boa parte do êxito das duas trilogias cinematográficas de Star Wars. Este modelo, transposto também para o filme que estreou no Verão passado – uma aposta de algum risco mas plenamente ganha – justifica igualmente o sucesso por ele alcançado e as notícias de uma nova película em 2017, uma previsível participação em The Avengers 3 e o desenvolvimento de uma versão animada, em fase de pré-produção.

Voltando à banda desenhada, uma nota final para a escolha criteriosa dos sucessivos desenhadores que têm acompanhado Bendis, com destaque para o inicial Steve McNiven e, depois, para os diversos comics desenhados pela revelação Sara Pichelli, não cometendo a injustiça de esquecer a uniformidade conferida pelo excelente colorido de Justin Ponsor.

Comecei este texto dizendo que já vi – e li – as mais surpreendentes – e (quase) inqualificáveis – propostas, das mais variadas proveniências e que Guardians of the Galaxy é um dos exemplos mais recentes.

Quero concluir afirmando que – mais de uma vez – comprovei que é possível ser estimulado e surpreendido com conceitos que – à partida – parecem aberrantes e (quase) inqualificáveis. Foi o caso de Guardians of the Galaxy.

Guardians of the Galaxy

Spawn of Mars and Other Stories

Spawn of Mars

Argumento e desenho de Wallace Wood. Fantagraphics, 2015.

Alguma coisa deve ter corrido mal: o futuro a que chegámos não é o futuro que nos prometeram. Desconfio que isto já é conversa antiga para quem está a ler, mas o regresso do Marty McFly a 2015 pôs a Internet em revolta. Acordámos dia 21 de Outubro, olhámos pela janela fora e constatámos que não existem carros flutuantes, hoverboards nas ruas ou roupa que se ajusta a qualquer tamanho. Fomos tomados por uma euforia com contornos vagamente dissociativos, entre a nostalgia por um imaginário passado e a expectativa de um futuro que entretanto chegou (desculpem-me o silenciamento estratégico de quem não passou por esta experiência).
Tendo em conta os hábitos de Hollywood, é surpreendente que ainda não tenha surgido uma nova versão do Back to the Future para capitalizar o hype. Mas como é que se faz futurismo em 2015? Julgando pelo recente The Martian, não se faz. Em vez do futuro e do Michael J. Fox, teríamos o Michael Cera com tatuagens a sonhar com a cultura pop dos anos 80. Como poderia ser orquestrado este golpe? Ou seja, que acontecimentos resultariam na criação de uma realidade paralela, em que o futuro é aborrecido? Olhando para o nosso mundo, podemos correlacionar o nosso extravio temporal e a estranha realidade em que vivemos com agentes históricos que não foram contemplados pelo Back to the Future II.
O antropólogo David Graeber sugere, por exemplo, que várias das promessas da ficção científica para o século XXI eram tecnicamente alcançáveis e que só ainda não se cumpriram porque as condições sociopolíticas não o permitiram. No seu lugar, desenvolvemos tecnologias essencialmente burocráticas que reforçam as desigualdades sociais existentes e que em pouco contribuem para o despontar luminoso da civilização intergaláctica. Por outras palavras, ainda não colonizámos Marte porque preferimos criar a iTunes Store. Para um reboot bem sucedido, basta ter isso em conta.

A hipótese de Graeber é apoiada pelas histórias de sci-fi em Spawn of Mars and Other Stories. Nelas abundam naves espaciais e máquinas do tempo, sem que apareça um único smartphone. Este volume pertence a uma série dedicada a clássicos da editora EC Comics, mais conhecida por chocar e atrair as atenções da classe média americana dos anos 50 para os perigos da banda desenhada. Spawn of Mars… é relativamente moderado no shock value. Dedica-se a comics de sci-fi ilustrados por Wallace Wood, escritos maioritariamente por William M. Gaines e Al Feldstein para as revistas Weird Science e Weird Fantasy.
As personagens desta colecção deparam-se com problemas próximos dos nossos, como o esgotamento dos recursos naturais, a guerra e a sobrepopulação. A exploração espacial é geralmente a resposta encontrada para estes desafios, pelo que Spawn of Mars… não apresenta soluções particularmente inventivas (admito que quaisquer outras hipóteses parecerão supérfluas se pudermos simplesmente fugir do planeta Terra).

Spawn of Mars

Spawn of Mars

O avanço tecnológico destes futuros paralelos parece, portanto, ter divergido do nosso a determinado momento. Como consequência, os conceitos explorados nestas histórias parecem mais desadequados do que propriamente antiquados. Podemos dizer que os cenários altamente especulativos e por vezes patetas de Spawn of Mars… — que incluem cientistas a trabalhar na cave, andróides militares emprestados para fins domésticos e mulheres engravidadas por extraterrestres —, funcionam numa lógica de suspensão das regras que desafiam o senso comum e promovem o pensamento lateral. Neste sentido, o recurso frequente a retóricas pseudocientíficas não é (só) um defeito, mas também uma necessidade quando se querem criar situações altamente improváveis.
Este efeito é apontável, por exemplo, em Transformation Completed. Nesta história de seis páginas, um soro experimental permite a transição total entre o sexo masculino e o feminino, e vice-versa. No cenário proposto, a determinação biológica da identidade e orientação sexuais é, ao mesmo tempo, absoluta e completamente fluida: alguém com uma anatomia e identidade masculinas que é sujeito a este tratamento, transformar-se-á física e psicologicamente numa mulher. Deste modo, as características identitárias são contingentes a condições biológicas que são elas próprias transitórias, colocando a questão transgender de pernas para o ar (de forma certamente problemática, mas por isso mesmo interessante).
Há outros conceitos que são explorados, como o amor inter-espécies (nas histórias Spawn of Mars e The Maidens Cried), as consequências práticas da imortalidade (The Two-Century Journey), paradoxos temporais e os perigos de tecnologias como a teleportação ou a mais corriqueira energia nuclear. A maioria das histórias recorre a twists e inversões de posição que obrigam o leitor a confrontar-se com o seu próprio reflexo, mas que são mais ou menos previsíveis para uma audiência actual (“afinal, éramos nós os extraterrestres,” “estamos para os extraterrestres como o gado está para nós”, etc.; talvez já fossem previsíveis quando foram publicadas?).

Como conjunto de ficções especulativas, Spawn of Mars… é uma curiosidade histórica e uma panorâmica sobre futuros que se tornaram tangentes do passado. Como conjunto de obras de banda desenhada, representa uma amostra do trabalho do artista Wallace Wood e é por aí que o seu interesse se eleva. Como era comum nos comics da época, cada história inicia-se com uma grande vinheta titular. Wood usa-as para estabelecer a atmosfera geral da história e exibir a extensão das suas capacidades técnicas. Muitas destas vinhetas poderiam até existir como ilustrações autónomas ou posters, cheios de pormenores da tecnologia, da fauna e da flora extraterrestres que convidam à exploração pelo olhar. A expressividade com que Wood representa estes pormenores em tinta da china e screentones—os reflexos e brilhos do metal que dão volume às naves espaciais e as formas tortuosas da vida alienígena que fazem lembrar, por razões certamente genealógicas, as criaturas abjectas de Chris Weston em The Filth — são o segredo do negócio e poderiam também ganhar autonomia para lá das histórias em que aparecem. Se retirássemos a trama e os personagens e reduzíssemos tudo a imagens, poderíamos chegar a uma sci-fi superficial em que o grafismo seria um fim em si mesmo, de forma semelhante ao que vemos em autores contemporâneos como Yuichi Yokoyama ou Léo Quievreux.
A vontade de extrair as imagens do seu contexto é exacerbada pelo design das páginas que, numa primeira análise, sofrem com uma negociação pouco cuidada entre imagens e texto. As histórias recorrem demasiado a descrições verbais maçudas e o texto acaba por controlar o espaço da página. Por consequência, as imagens ajustam-se de forma grosseira a grandes blocos de texto expositivo ou a balões de fala encavalitados. Neste sentido, não foge à norma da maioria dos comics seus contemporâneos. Mas estou disposto a dar o benefício da dúvida e argumentar que esta submissão da imagem ao texto poderá conferir um valor estético específico aos comics desta era, que merece ser reapreciado. Talvez este tipo de relação entre imagem e texto possa ser recuperado em experiências futuras de banda desenhada. É um morto por ter cão e morto por não ter, mas na positiva.

Spawn of Mars… reflecte uma cultura popular mais investida numa ideia do futuro do que a nossa. No entanto, este livro não servirá como referência do futuro (afinal, o futuro, para nós, já chegou). Para mim, servirá de referência para o futuro: um registo do que poderá ser e do que poderia ter sido.

Is That All There Is?

Is that all there is?

Argumento e desenho de Joost Swarte. Fantagraphics, 2012.

Tenho relido o Tintin nos últimos anos porque editei o Papá em África (MMMNNNRRRG; 2014) de Anton Kannemayer, porque tive acesso ao Tintin Akei Kongo (edição anónima) e porque estou a despachar a minha colecção para o “meu sobrinho” de nove anos que precisa de ler BD – claro que meti no ecoponto o “África” e o “América”, não ia dar ao miúdo aquele lixo mental! Relendo a obra toda percebe-se como a série vai evoluindo em todos os sentidos, incluindo o crescimento humanista de Hergé, de puto estúpido a um cidadão do mundo. Seja como for, até ao País do Ouro Negro as aventuras do “repórter de poupinha” são uma parvoíce pegada de situações “non-stop” de folhetim para crianças. Como o MacGyver, é só inventar tretas, pistolas que encravam e passam mil vezes de mão inimiga para mão traidora para um maneta, um copo-casca-de-banana para um gajo malhar e partir-se todo, mais uma perseguição de carros, motas e hidroaviões, etc, etc…

Is that all there is?

Is that all there is?

Quando se fala nos autores de BD de “linha clara” em que Hergé é a grande referência – termo este que o holandês Joost Swarte cunhou para o tipo de grafismo de BDs que utiliza linhas fortes que têm a mesma espessura e importância, em vez de ser usado para enfatizar determinados objetos ou ser utilizada para sombreamento – é realmente referido exclusivamente para a questão gráfica. Sei que que posso estar a ser redundante ao escrever isto, afinal “linha” diz que só se pode incluir desenho. Ainda assim, raramente se discute o tipo de narrativa ou de conteúdos temáticos que se vincula à “linha clara”. Não é uma surpresa de alguma forma porque geralmente o desenhador ultrapassa o argumentista quando se fala vulgarmente de BD – embora com a moda da “novela gráfica” se tenham invertido esses papéis.

Podemos juntar o holandês a um grupo de autores que renovaram a “linha clara” nos anos 70 e 80, como os franco-belgas Yves Chaland, Ted Benoit, Serge Clerc e Floc’h mas também Theo van den Boogaard (outro holandês), o espanhol Daniel Torres e até o “nosso” Luís Louro. Mas tal como o último escabroso álbum para comemorar os 30 anos da série Jim del Monaco, a maior parte destes artistas fazem a manutenção dos pecadilhos da BD com a sua insistência irritante no uso de elementos nostálgicos de outros tempos mais “dourados” – dos tempos das colónias e dos seus ignorantes “conguitos” com lábios de salsicha, das aventuras exóticas pelo mundo ainda por cartografar, da inocência e surpresa da descoberta de novas tecnologias sejam elas para conquistas espaciais como para aplicação quotidiana, o regabofe das corridas, velocidade e skyscrapers, etc… É muito estranho o conteúdo da “linha clara” que recorre sempre à nostalgia e à infância inocente das BDs dos outros tempos.

A “linha clara” parece ter um propósito programático, o “retro”. Ainda mais estranho isto se considerarmos a expansão e a euforia económica dos anos 80, pois como se sabe o “mercado da nostalgia” depende do mal-estar do presente. Estes autores queriam “ainda mais e melhor” do que a década de 80 lhes ofereceu? Swarte não sai muito desta linha de pensamento, mesmo que ele tenha feito parte dos Provos – movimento de contestação dos anos 60 – mas foi de certeza menos militante que o seu conterrâneo Willem – já agora, é de notar que ambos fazem a BD “Enslaved by the Needle!” (1973) com Willem como argumentista e que se encontra neste livro. Sei que Swarte fez algumas BDs políticas nos inícios dos anos 70, altura aliás, quando começa a sua carreira como autor, editor e divulgador de BD trabalhando com a Real Free Press, uma editora e loja de BD que sobrevivia graças ao narcotráfico… man, those were the days!

Nesta compilação, verdadeiro ”cartão de visita”, a sua obra parece-me pouco convincente no que quer transmitir do seu foro intimo ou de teor político, embora não seja nitidamente um nostálgico à procura da zona de conforto da infância feliz – ah, as tardes preguiçosas que que se lia as novas “aventuras do Zonzon & Rififi na Micronésia” – pois até introduz elementos de sexo e violência (vindos da estética underground dos anos 60/70) sobretudo em narrativas que decorrem no caos das grandes urbes. Talvez a sua maior crítica seja a alienação mental da sociedade mas a tónica sabe a pouco.

Lê-lo (hoje?) parece ser um acto pueril, tal como ir ressacado a um museu de arte contemporânea no Domingo de manhã, em que por mais esforço intelectual que seja feito, o produtor e o receptor não se entendem… mas sim, é muito giro ver a instalação no chão, ler a folha de sala pelo sim pelo não, não vá passar ao lado a intenção do artista. Depois da bica, uma olhadela na livraria do museu, metemo-nos no carro e esquecemos o que vimos… É óbvio que Swarte destaca-se pela espetacularidade do grafismo e “design”, tanto que ele tem feito desde selos a edifícios na sua carreira profissional e artística, trazendo à baila a máxima “the medium is the message”. Olhar para um desenho seu é descascar detalhes cómicos ou irónicos como a capa do segundo número da revista Raw (1980) também aqui republicada. É uma delícia observar vinhetas ou imagens cheias de detalhes e construções extravagantes mas sobretudo a orgia de “slapstick” e “screwball” com saltos à globetrotter. E depois disso o que acontece? Is that all there is? é um título infelizmente mais irónico do que gostaria de ser.

Para quem não pratica a francofonia, o antigo “número 2” da Fantagraphics, Kim Thompson (1956-2013), deu à estampa em língua franca para a Aldeia Global uma boa selecção de BDs e algumas ilustrações produzidas entre 1972 e 2010 para várias revistas e livros. Um gesto editorial de salutar embora o livro poderia ser melhor: podia ter uma capa dura para não termos um “peixe morto” na mão, podia ter um formato maior para não ter algumas BDs deitadas, ter a ordem dos trabalhos alinhada cronologicamente para se perceber a evolução do autor, ter mais textos de apoio – o do Chris Ware é bom mas não chega – para quem não vá conseguir distinguir um trabalho pessoal de uma encomenda institucional como “The Rubber Paradise” que saiu no álbum Les aventures du latex: La bande dessinée européenne s’empare du préservatif (1991), curiosamente a BD mais genuinamente divertida desta compilação da “Fanta”.

Por fim, lembro que este autor em Portugal só existe como ilustrador do provocador e belíssimo livro O papalagui : discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul (Antígona, 1988). O que é estranho, um livro que já teve várias reedições ao longo de três décadas nunca se publicou um livro a solo de Swarte. Será porque Swarte fez BD a pedir o boicote ao café angolano (como forma de pressionar o fim das guerra nas colónias) em 1973, que ninguém o liga? Os portugueses toscos não o perdoaram? Claro que não é isso! É só ignorância visual que este país sofre, pá, afinal as primeiras edições nacionais do Papalagui nem as ilustrações tinha… Talvez para poupar uns trocos e para além disso, os nossos editores literários sempre tiveram a infeliz postura do “ter bonecada para quê?”

Surfista Prateado

Silver Surfer 1
John Buscema.

No mundo todo não há nenhum sítio para mim. Exilado aqui, no planeta Terra, sou um estranho entre estranhos. Um estrangeiro entre a raça dos homens. Consigo suportar as forças hostis da natureza, ou mesmo a dilacerante angústia da solidão eterna, mas não aguento os acessos incompreensíveis da loucura humana. Não posso ficar aprisionado num mundo sem razão. Tem de haver uma fuga. Tem de haver uma maneira de alcançar a tranquila plenitude do espaço. Ou então que conheça a morte, em vez desta vida sem sentido. Quanto mais tempo tenho de ser um prisioneiro no selvagem planeta Terra? Quanto tempo antes que a solidão me destrua? Este não pode ser o meu destino eterno. Não foi para isto que renunciei à minha terra, à minha vida, ao meu amor. Sou odiado e temido pelos mesmos humanos que o meu coração quer ajudar. Eu disse o meu coração? Como pode ser isso, se eu não tenho coração?

(Versão Pedro Mexia da crónica “A Barreira Invisível” no livro O Mundo dos Vivos, Tinta da China 2012)