Ignorância Lusa

Gibrat
Le Vol du Corbeau, pormenor de ilustração original inédita “Jeanne et Cécile”, 2012.

Ao falar de banda desenhada, é possível confundir “capa” e “prancha”?

Embora a resposta devesse ser um rotundo “não”, a realidade — portuguesa, recente — fornece uma resposta discrepante.

Explicações já a seguir…

Estou ligado à banda desenhada há muitos anos. Quase há meio século como leitor interessado, há cerca de três décadas de forma activa como divulgador, organizador e/ou comissário de exposições, editor…

Reconheço, sem dificuldade nem qualquer tipo de concessão, que, ao longo destes últimos 30 anos, a banda desenhada, fora do círculo dos eus habituais leitores/consumidores/divulgadores ganhou um novo estatuto: tem outro reconhecimento, outro mediatismo, outra relevância.

Se para muitos – mesmo para alguns daqueles que deveriam ter outra abertura mental – ainda continua a ser “os macaquinhos para os miúdos” e pouco mais, hoje em dia – muito por culpa da sua mediatização graças ao cinema? – é regularmente notícia – embora nem sempre por aqueles motivos que eu mais gostaria…

Um dos casos mais recentes, foi a venda de originais de banda desenhada organizado pela leiloeira britânica Christie’s, no início deste mês de Abril. Acontecimento que ganhou mais relevância por ser o primeiro organizado por uma das mais famosas casas de leilões da Europa.

Mesmo assim, o evento, a montante, passou praticamente despercebido em Portugal. Depois, o seu resultado – vendas brutas de quase quatro milhões de euros e vários recordes — levaram a que toda a comunicação social, das cadeias televisivas aos mais humildes pasquins, noticiassem que a “…capa original do álbum Tintim no Tibete desenhada por Hergé foi vendida hoje em leilão em Paris por 289.500 euros, um preço recorde para um desenho a lápis do criador belga…”

Hergé
Tintin Au Tibet, Casterman, 1960. Lápis sobre papel, prancha 54.

“E qual o problema?”, perguntarão muitos dos leitores deste texto, que também foram leitores/ouvintes da notícia. Um pormenor, da maior importância: o original vendido, não era a capa a lápis de Tintin no Tibete, mas sim o esboço da prancha 54 do mesmo álbum – como aliás facilmente se percebia pela imagem reproduzida até por muitos dos meios de comunicação social que fizeram a divulgação.

Perante isto, não sei o que é de lamentar mais: a forma alarve e seguidista – económica… — como se reproduzem comunicados de uma agência informativa sem qualquer cuidado de verificação da informação veiculada, se a ignorância/falta de profissionalismo desta última ao traduzir – do francês? do inglês? – para português o comunicado oficial da Christie’s. Na Agência Lusa que deturpou, desculpem, divulgou a notícia não houve ninguém que olhasse para o desenho? Em tantas rádios, televisões, jornais, ninguém soube distinguir uma capa de uma prancha?

E passa-se isto num tempo em que a banda desenhada até é ensinada (recorrentemente) nas escolas portuguesas – embora reduzida à sua forma mais básica e estéril (até para seu esvaziamento e para afastar dela potenciais leitores?), a um conjunto de (apenas) pranchas, tiras, vinhetas e balões… Parece que há que rever os programas escolares e incluir neles o conceito de “capa” e o que o distingue do de “prancha”… Poderá ser útil dentro de 20 ou 30 anos…

Numa ajustada comparação, esta notícia faz lembrar as “traduções” – leiam “adaptações livres”, por favor – que noutros tempos – os anos 30, 40, 50 do século passado, época de ouro do jornalismo infanto-juvenil em Portugal – se faziam das bandas desenhadas estrangeiras neste país, naquelas que ficaram – justamente – como revistas de referência – Papagaio, Mosquito, Mundo de Aventuras, Cavaleiro Andante… – para várias gerações.

Faltou, no presente caso, é verdade, o “aportuguesamento” dos nomes dos intervenientes: Tintin podia ter passado a Timóteo ou Tibúrcio, Hergé dava um bom Hermenegildo e se o Tibete tivesse sido transferido para a Serra da Estrela, imagino as capas de jornais e notícias de abertura dos telejornais que a venda da tal “capa” teria dado…

Franquin
Sprirou et Fantasio, Hors-Série L’Heritage, Dupuis 1976. Tinta da china sobre papel, capa.
Uderzo
Astérix Le Devin, Dargaud, 1972. Tinta da china sobre papel, capa.

A finalizar, a título de curiosidade, para além do esboço da prancha 54 de Tintin no Tibete – não, não é de mais frisá-lo… — as principais vendas do primeiro leilão de originais de BD organizado pela Christie’s, em cooperação com a galeria parisiense Daniel Maghen, que até registou uma afluência recorde que ultrapassou largamente a lotação do hotel de luxo onde foi realizado,  foram a capa original – e neste caso é mesmo a capa! – de Astérix: O Adivinho (193.500€) e uma prancha de Astérix na Córsega (145.500€), ambas da autoria de Uderzo, e a capa – sim, outra capa! – de Franquin para uma edição especial de Spirou et L’Heritage (157.000€).

Valores bem interessantes atingiram igualmente uma prancha de La Macumba du Gringo (55.000€), de Pratt, e uma ilustração de Gibrat (67.500€), naquela que foi a maior venda de originais de BD de sempre na Europa, onde se registaram recordes absolutos para obras de Delaby, Cosey, Lepage, Lacombe, Juillard, Manara, Miralles, Frank Pé, Rochette e Rosinski.

Como apontamento final  – mas que, a exemplo do leilão em si, mostra bem o interesse crescente que os originais de banda desenhada despertam, enquanto investimento seguro (e bom negócio também para uma leiloeira com a fama da Christie’s – refira-se que uma vinheta – sim, uma vinheta! — de Blake e Mortimer: A Marca Amarela, de Edgar Pierre Jacobs, foi vendida por quase 10 mil euros, enquanto duas vinhetas – exacto, dois rectângulos medindo à volta de 7 cm x 10 cm… — da versão original em tiras, publicada no Le Soir, de Tintin e as Sete Bolas de Cristal, foram licitadas por 17 mil e 22 mil euros.

Jack Kirby
Fantastic Four #53, Marvel, 1966. Tinta da china sobre papel, página 20. Tinta de Joe Sinnott, balonagem de Artie Simek.

Por razões geográficas (?) apesar de o leilão ter tido participação mundial pela internet e pelo telefone, um original de Jack Kirby e uma história completa do Spirit, de Will Eisner, não encontraram comprador.

Destaque: Jacques de Loustal, “Lumières du Jour”. Ilustração original “Careless Love”, utilizada num cartaz das edições Art Moderne, 1987.


Pedro Cleto escreve habitualmente no blogue As Leituras do Pedro.

One comment

  1. Joao Antunes says:

    A promoção deste evento/leilão foi realmente de um profissionalismo enorme, além de ter recebido diretamente o catálogo da Christies o próprio Daniel Maghen telefonou-me a endereçar o convite e que inclusive marcavam-me o hotel se eu quisesse, mostra um cuidado enorme com a atenção ao cliente. Também disse-me que dificilmente alguém vai conseguir juntar tantas obras de tanta qualidade novamente e certamente valia a pena ter ido ver a exposição das mesmas que era sem dúvida melhor do que a de muitos museus. Infelizmente não consegui ir por já ter compromissos inadiáveis mas vontade não faltava.
    Uma curiosidade pelo que soube do leilão é que 70% dos compradores foram novos compradores (mostrando o crescente interesse como Investimento pela BD) e houve compradores de países asiáticos e árabes, para mim sem dúvida tem sido a melhor forma de investimento que tenho feito.

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