Na capa de um dos livros mais recentes de Francisco Sousa Lobo, The Care of Birds/O Cuidado dos Pássaros, está o desenho de um homem de perfil. Peter Hickey, o personagem principal, tem os olhos fechados, uma faixa de luto no braço e um pássaro a voar da braguilha das calças com a graciosidade de uma pila — ou uma pomba a voar da cartola de ilusionista. A capa é uma provocação (um eyeball kick abusando da expressão de Allen Ginsberg), mas também uma síntese da camada dramática do livro: Peter é um reformado alcoólico para quem a observação de pássaros é um ritual de aproximação com Deus e de sublimação da sua pedofilia. Um Êxtase de Santa Teresa no negativo.
A “origin story” do personagem é reduzida à primeira página, em que Peter nos conta sobre os passeios de observação de aves que fez na infância e durante os quais foi abusado sexualmente. A observação de aves é assim o eixo a partir do qual se desenvolvem várias dimensões do livro. Do ponto de vista da estrutura da história, é um sistema a partir do qual inferimos aspectos da relação de Peter Hickey com (1) Deus e (2) crianças. Do ponto de vista das suas funções na trama, é multivalente: é a forma que Peter arranja para se aproximar das crianças da paróquia, é uma prova de forças (provar que não é um pedófilo a si mesmo, a Deus, à sociedade?) e é também uma tentativa de corrigir ou reescrever o passado ao iniciar os miúdos na observação de pássaros, como dantes também o iniciaram a si. Para além da lógica pederástica subjacente—invocando o poder prescritivo e normalizador dos rituais de iniciação—, há aqui evidências de um circuito ou compulsão de repetição. Peter é como um fantasma que ensaia eternamente os mesmos movimentos, amplificando a angústia e paranóia em vez de gerar a catarse esperada. A faixa de luto, será por si mesmo? A complexidade e consequências dos termos em jogo impedem o personagem (e talvez os leitores) de poder ou querer chegar a conclusões definitivas.
A história progride através destas indeterminações e da justaposição de termos aparentemente contraditórios, que ora se reforçam mutuamente, ora se anulam, formando a topografia instável do personagem. Como diz a sinopse na contracapa, “Peter é um católico tarado e sem Deus com um síndroma de santo.” Se esta caracterização o humaniza, o prosaísmo da história não permite melodramatismos ou empatias gratuitas. “Peter Hickey está para os pedófilos como os observadores de aves estão para os caçadores”, diz também a sinopse. A inocência aparente do “birdwatching” é o truque de ilusionista de Peter Hickey. O que achar dos passeios que este faz com rapazes pré-pubescentes para observar aves? A partir de que momento é que podemos considerar um comportamento como invasivo ou predatório? Para desenhar as aves, Peter captura-as com armadilhas. As aves mandam-no para o caralho e a ironia talvez escape ao personagem.
Se quisermos reduzir Sousa Lobo ao Santo Graal da assinatura do artista, podemos falar num programa que é recorrente no seu trabalho e que envolve estruturas de autoridade, doença mental e perversão. Numa obra anterior com contornos autobiográficos, O Desenhador Defunto, o autor estabelece uma série de equivalências entre a autoridade moral da fé católica, a autoridade do trabalho, e as hierarquias de valor do mundo da arte. Francisco Koppens, o personagem principal, arquitecto deprimido e também ele um “católico tarado” que em segredo faz banda desenhada erótica sobre sociedades matriarcais, acha-se aquém de todas essas autoridades. A propósito de uma performance artística, Francisco consulta de enfiada um padre católico, um psicanalista e finalmente um crítico de arte. Os sistemas implodem e não chegamos a ouvir a punchline da anedota. Francisco acaba por ter um episódio psicótico e convence-se que a BD porcalhona que andou a fazer desencadeou uma onda de suicídios em massa, que vai dos amigos próximos até ao Papa. Aqui, a perversão é fazer banda desenhada, esse antro de desvios psicossexuais para gente que nunca ultrapassou as obsessões de infância. A Igreja e o mundo da arte folhearam umas revistas e deslumbraram-se com os fatos em látex dos X-Men. Deus olha lá do cimo, estilo smiley mirone.
No seu site, Sousa Lobo publicou um pequeno ensaio, The Comic God, onde sugere algumas tipologias da representação de Deus em banda desenhada. A julgar pelo uso que faz da figura de Deus no seu próprio trabalho, talvez tenha chegado à conclusão que a literatura existente estava em falta. As pranchas do artista são construídas com desenhos delapidados, perspectivas vertiginosas e espaços claustrofóbicos, em jeito de replicar as estruturas de autoridade que interiorizamos. O Deus de Sousa Lobo é isso. Não é “Deus o extraterrestre”, nem “Deus o ausente”, nem “Deus o amigo imaginário”: é uma projecção, uma estrutura avassaladora que observa do andar de cima e que nivela tudo cá em baixo.
Essas estruturas são revisitadas em I Like Your Art Much, livro de banda desenhada em torno de uma exposição do amigo Hugo Canoilas. A meio de considerações sobre como o desenvolvimento da arte e a prática artística estão assentes sobre a ideia de “crise”, Sousa Lobo recupera a sua crise pessoal exposta n’ O Desenhador Defunto. Citando Canoilas, o autor admite que O Desenhador Defunto é uma autobiografia “pornográfica”, remetendo mais uma vez a prática da banda desenhada para o domínio da perversão, aqui no sentido mais restrito do exibicionismo da vida pessoal. A perversão está no acto de confessar que, nas palavras de Sousa Lobo, é “a própria doença que se propõe a curar”, tanto na igreja como nas páginas de banda desenhada.
Mas não se poderá dizer que, na ausência de legitimação social ou financeira, uma actividade como a banda desenhada é necessariamente uma “perversão”? Afinal, a média tem sempre um desvio. Ainda em I Like Your Art Much, o autor recusa a distinção ao amarfanhar “arte” e “banda desenhada” no espaço da página. Mas n’O Cuidado dos Pássaros, Peter Hickey chega a ser comparado a Henry Darger, romancista e outsider artist cujo trabalho foi apenas descoberto postumamente. Com um pezinho dentro e outro fora, entrar na galeria de arte ou na igreja com uma BD debaixo do braço continua a ser mais que uma provocação. É um acto de rebelião.