Argumento e desenho de Adrian Tomine. Drawn and Quarterly, 2015.
Este livro podia passar na HBO. Porra, porque não adapta o DeLillo este livro, em vez de adaptarem os dele?
Em Playground, ensaio gráfico do argentino Berliac sobre o filme Shadows (1959), de John Cassavetes, o autor discute a translação de uma ideia do cinema para a banda desenhada: tal como Cassavetes se propunha descobrir a película enquanto a filmava, Berliac pretende derivar a narrativa do desenho. Citando Chris Ware — o que fazemos, a partir de certa idade, já não é ver, antes etiquetar, categorizar, e identificar dentro de um todo — apresenta um esquema comparativo entre o “cartooning” e o “dibujo”. Ao primeiro, associa ler, ideias, descrição, decisão, formulação de uma experiência; ao segundo, ver, emoções, expressão, improvisação, a experiência em si.
A relação de analogia que o cinema mantém com a realidade, herdada da fotografia, permite-lhe, em princípio, melhores condições para deixar respirar o “tema” fílmico. Podemos encontrar, na história do cinema, uma linhagem de reacção ao espectáculo, com takes mais longos, planos afastados, actores amadores, câmaras de mão, técnicas que se tornaram tão conotadas com uma impressão de autenticidade que acabaram por fazer o seu caminho até ao baixo-espectáculo, a televisão. Basta pensar no estilo “vérité” de Louie (2010-), de Louis CK, tentativa de encontrar uma relação mais directa com um espectador de hábitos amadurecidos, menos permeável ao slapstick de estúdio e ao riso que está lá a rir por nós desde Honeymooners.
A ideia de Berliac na bd, ao propor uma alternativa ao cartooning, é contestar os mecanismos enquistados de honestidade, dos comix dos anos 60, passando pelo “Indy” dos anos 80, ao comic narcisista e autobiográfico da viragem do milénio. Nesse sentido, que melhor exemplo de que Paying for It (Chester Brown, 2011), uma excelsa peça de defesa num tribunal público, sobre ir às putas? Logo que desenha, a mão mente, e se o psicanalista está desatento, o paciente desfaz-se em petas.
Se cada círculo do inferno literário tem os seus circuitos de autorização e recepção, na banda desenhada podemos falar de Adrian Tomine como um “cartunista emérito”, pensando em Françoise Mouly, directora gráfica da New Yorker, que ao longo da sua carreira na revista sustentou um elevado nível de encomendas gráficas a artistas de bd, fomentando a sua aceitação num meio literário mais vasto. A crítica de A.O Scott a Killing and Dying, no New York Times, refere o campo de habilidades que o cartunista emérito convoca: “linhas claras e precisas, composições naturais, imagens de significado transparente, como celofane”.
Recorde-se a capacidade epigramática de Chris Ware nas capas da revista de Mouly. Só como encenação, cartoon, é possível cruzar o inconciliável. A linha e as cores são afáveis e evocativas da simplicidade da ilustração de outrora, mas a composição, aérea, ao nível do olho adulto, isométrica, é da ordem do controlo: o adulto na casa de bonecas. Qualquer pessoa que leia bd reconhece-se neste pecado original, o de uma literatura de que não se gradua nem se emancipa, mas que ilumina o quarto como uma luz de presença.
Em K&D esta chamada retro vem logo na primeira história, A Brief History of the Artform Known as “Hortisculpture”, parábola sobre a ignorância artística do homem comum e o desprezo ainda maior dos que o rodeiam. Contada em sequências de comic strips (normalmente 2×2 vinhetas cada), é subsidiária do género, mas inverte-o. Não há particular recompensa em cada uma das “gags”, aliás, a falta de graça instala progressivamente um sentimento de miséria existencial. O caso é sério porque o protagonista está convencido de que as suas esculturas de jardim são a próxima cena. Numa comic strip tradicional, seria um projecto de domingo mal resolvido; em K&D, é uma crise de meia-idade em que se gastam cinco anos.
Killing and Dying é uma graphic novel, mas na verdade, compila números da série Optic Nerve, pormenor enterrado na ficha técnica. Cada “Criterion Collection” destas é uma performance perante o público adulto que chega tarde à festa, tal como as lindas edições de mestres japoneses que Tomine patrocina na Drawn and Quarterly. Esses gekigá [“dramatic pictures”] dos anos 50 e 60 têm um pouco mais de credo e implicações no dispositivo de “maturidade” do autor. Se em K&D mantém, tal como as dos seus coevos, uma sensibilidade aguda para com o episódio íntimo, a projecção de si nas personagens é parcial. Estas estão sós em obsessões e vícios, aspectos pouco edificantes que só a ficção pode tematizar. Nesta acepção, ler é uma forma de sair do mundo, de estar com pessoas que nunca se conheceu. Não interessam as reviravoltas (notas de ritmo) nem as aprendizagens (lições morais), razão pela qual o fim das histórias coincide com o abandono pelas personagens das suas idiossincrasias. A vulgaridade dos dramas é proporcional à capacidade do autor de os transmitir por inteiro. Há uma redenção estética nisso, e o pequeno aparece como sublime.
O título de K&D reporta à penúltima história, onde as tentativas de uma aspirante a comediante são justapostas ao cepticismo do pai e à doença da mãe. Na ambivalência entre linguagens, lembra Wilson (Daniel Clowes, 2011), a história de um tipo contada em todos os matizes, jogo com a superficialidade literal da banda desenhada. Jean-Luc Godard fez uma vez uma história do cinema em que colocava o cinema a falar de si próprio, através de citações. A bd é ou não é o meio em que se fala do holocausto com ratinhos? Que fazer disso quando a bd for considerada literatura, sem precisar de muletas? Quando tomarmos o Palácio de Inverno, faremos nós as regras.