Argumento Jonathan Hickman, desenho Esad Ribic. Marvel, 2016.
Na adaptação de um superherói ao cinema, Superman (1979) ou Batman (1989) tornaram-se exemplares. Como se diz na gíria, tinham a hook and a look, fizeram muito dinheiro, e tornaram-se parte da cultura popular. Como sabemos pelas suas sequelas, a maturação de uma propriedade fílmica de superheróis é outra história.
Para a saga dos X-Men, agora no sexto filme (descontando derivados), a 20th Century Fox experimentou uma receita original para se actualizar de modo credível. Numa primeira trilogia, adaptou-se conforme o ar do tempo, com muito cabedal. Numa segunda fase, a chamada prequela, os filmes tornaram-se de época, acompanhando as histórias da bd à medida do período em que debutaram. As duas trilogias foram articuladas para formar um contínuo: em First Class (2011), Jennifer Lawrence apenas sonhava que era Rebecca Romjin, mas em Days of Future Past (2014) os actores dos primeiros filmes aparecem como versões futuristas dos seus sucessores, repartindo tempo de antena. Em Apocalypse estaremos nos anos 80, haverá impermeável amarelo, mohawk, e aquela ninja asiática do Jim Lee, estilo Conta-me como Foi, “baza dar um giro por todos os lugares onde foste feliz”.
A expansão de sagas em trilogias, remakes, e rebootscongruentes merece novo cuidado na era do Marvel Cinematic Universe. Depois de várias tentativas falhadas, que puseram as propriedades fílmicas mais valiosas em mãos alheias, o projecto arriscado de Kevin Feige, que meteu todas as fichas no autofinanciamento de Iron Man (2008), tornou-se uma máquina de fazer blockbusters. A continuidade desse projecto, bem como de outras narrativas transmédia semelhantes, depende de uma sinergia produtiva entre filmes, com subplots saltitantes, cenas pós-créditos, e desdobramentos televisivos. Com duas dezenas de filmes de superheróis previstas para a próxima década, a ameaça é a saturação, e a oportunidade é a diversificação da oferta.
O caso da colega da Marvel na Disney, a Lucasfilm, serve de aviso. Na preparação de The Force Awakens (2015) começou-se por atirar para o lixo anos de histórias derivadas, uma continuidade barroca chamada “Holocron” com vários níveis de pertinência. Claro, basta recomendar a alguém A Caravana da Coragem ou o Especial de Natal de Star Wars para se ter a prova do que José Gil chama a “não inscrição”. Nunca houve pressa de fazer o blu-ray dessas memórias, e na trilogia “original”, a correcção cosmética foi de tal modo patológica que só graças a um grande maluquinho temos acesso à reconstituição mais fiel do filme de 79, a versão Despecialized.
Nos superheróis há uma tradição de mergers and acquisitions a incitar, desde muito cedo, a bons truques de ilusionismo. Um caso recente é o de Angela. A personagem foi criada por Neil Gaiman em 1993, para o Spawn de Todd McFarlane, mas uma questão judicial de direitos acabou por opor os dois autores. Através de uma troca de favores com Gaiman, a Marvel conseguiu apropriar-se da personagem, e através de Age of Ultron (2013) introduziu-a no seu universo, onde é agora irmã de Thor e consorte dos Guardians of the Galaxy. O crossover é instrumento preferencial desta magia. Na variante mais modesta, é semana de moda, com fatos novos para todos; na mais pesada, é cirurgia mitológica de coração aberto.
Se em 1985, no primeiro Secret War, a Marvel cozinhava um evento à medida dos brinquedos da Mattel, com heróis magicamente transportados para um planeta alienígena (uma versão rudimentar dos Hunger Games), a concorrência já estava um passo à frente, e o gongórico Crisis of the Infinite Earths refazia o multiverso da cabeça aos pés. Devemos a Crisis a noção meta-narrativa da vinheta que se desfaz no branco. Em Infinite Crisis (sequela de 2003), a barreira da realidade é mesmo refeita a soco por um Superboy mimado!
O novo Secret Wars também tem uma agenda, embora bem disfarçada, com mitemas sofisticados. Pretende-se a eutanásia da linha Ultimate, guardando os seus aspectos mais reconhecíveis, o que começara com Original Sin (2014), uma maquinação para encostar às boxes Nick Fury, que a população em geral não vê como branco. Em paralelo, a retaliação que a Marvel exerce perante a Fox, por arruinar a face fílmica de Fantastic Four, atinge novas proporções, aspecto que certamente dará algum gozo ao seu último escritor de qualidade, Jonathan Hickman, que tem utilizado a equipa como cavalo de Tróia para desconstruir o universo Marvel: Secret Wars gira em torno da família original, mas esta está irreconhecível.
Nos meses que antecedem Secret Wars, os peões preparam-se para um colapso cósmico, que não conseguem evitar. Tal como na série de 85, emerge então um Battleworld, mas agora é um domínio feudal vicário, composto de todas as multitudes do universo Marvel, onde Dr. Doom é rei. Reed Richards fracassa, e é obrigado a reconhecê-lo perante o seu nemésis (“nós salvámo-nos a nós, mas tu salvaste isto tudo”), o que toca numa questão ontológica do universo Marvel: deve um prometeus transformar-se no demiurgo? E se tiver mesmo de ser?
À semelhança de Convergence, da DC Comics, SW é pretexto de múltiplas recombinações de histórias passadas, em mini-séries especiais que lembram Toy Story: enquanto não estamos de olhos neles, os brinquedos mudam de chapéus e divertem-se à brava. O sucesso deste fan service face ao da concorrência explica-se por um terceiro pólo, a Image Comics. Formada nos anos 90 como alternativa aos dois gigantes, tornou-se a melhor forma de suplementar os seus quadros. A DC tomou-lhe os piores tarefeiros dos primeiros tempos, como o pessoal da Top Cow Studios, mas a Marvel apanhou-lhe o sangue fresco.
Sernerd de tudo isto tornou-se uma carreira de sucesso. Não esqueçamos que E. L. James fez fortuna escrevendo fan fic de Twilight. Como dizia Grant Morrison, quem não gosta do que lê pode cobrir os balões de corrector e escrever por cima, ou ir ler as obras antigas. Mas mesmo sobre essas, nada está escrito na pedra. O conservador T. S. Eliot lembrava-nos que cada obra nova reconstitui o cânone inteiro que a precede. Estava a falar de superheróis?