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Macio e de folha dupla

Nesta vida, além da morte, só tenho como certo os impostos, as lesmas (se cuidassem de um jardim perceberiam num instante) — e os ingratos. Estes últimos, são menos que as lesmas, mas a par dos invejosos é do que mais se produz no país. No caso, nem é o pior desta comoção Covid-19, mas é seguramente o mais chato. Sempre com a mesma lenga-lenga, não renova o vocabulário mais ou menos desde o final dos anos 90 — o lixo, os bedófilos, indústria pop, educar, coleccionismo bárbaro, alienar, monocultura, círculo vicioso, zombies mensais (são vocês, estimados clientes), boicotar e sei lá que mais.

Banda desenhada de autor
Perspectiva actual da “monocultura”, “círculo vicioso” ou da “bibliodiversidade” na nossa livraria. Se existissse decoro, existiria.

A Mundo Fantasma (designadamente eu), não alertou “sobre o facto da distribuidora Diamond estar a encerrar a actividade”. A Diamond fechou os seus armazéns e o pessoal administrativo está a trabalhar em casa, à semelhança de meio mundo. A montante, as editoras deixaram de produzir, disseram aos autores de periódicos para pararem de escrever e desenhar (porque têm o hábito peculiar de lhes pagar pelo seu trabalho), as gráficas encerraram. A jusante, as livrarias estão… encerradas — ou a trabalhar como podem, tal como a nossa. Só não entende isto, quem não quer.
A partir daqui e neste momento, o que irá acontecer à Diamond e ao apelidado “mercado directo” é especulação. Não sei o que nos vai acontecer a nós, quanto mais aos outros. (Por acaso, tenho uma vaga ideia, mas sai do âmbito deste artigo.)

Portanto, começa com uma inverdade treslida no nosso site e continua com mentiras, ou estou mais em crer, ignorância, alimentada a alegre cegueira ideológica. O sistema Previews não chega a ser perverso, é o exacto inverso. É a diferença entre editar às cegas, ou editar com um determinado número de exemplares já vendidos. Para as livrarias especializadas é óptimo por esse e por pelo menos mais um motivo: ajudar a identificar o que encomendar para o mês, porque como podem ou não saber, não há devoluções como nas outras livrarias, temos obrigatoriamente de acertar. O que fica na prateleira pode parecer lucro aos olhos do Estado e de magníficos gestores de projectos falidos, mas o mais certo é ser prejuízo.

Gideon Falls
Gideon Falls de Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart, um dos comics editados graças aos “zombies mensais”.

As pré-encomendas, ao contrário do que este sobreeminente julga, não são efectuadas por “zombies mensais”, mas sim pelos nossos amigos e clientes, absolutamente livres de escolher onde querem gastar o seu próprio dinheiro. As editoras, em posse do número de exemplares já pré-vendidos decidem qual a tiragem final. Não é a Diamond que decide se distribui “porque não chegam ao número mínimo de pedidos” — isso nem sentido faz, porque não há pedidos antes do catálogo ser impresso, a decisão de distribuir foi anterior. A partir do momento que a Diamond aceita um projecto editorial novo para ingressar no catálogo Previews, distribui 100 exemplares ou 35.000. O editor é que tem de decidir se 100 exemplares são viáveis e quantos vai imprimir para além desses. É provável que não se tornem exactamente no almejado best seller. Também é provável que a distribuidora não repita a brincadeira, porque tem salários para pagar no fim do mês. Bastaria consultar o documento de submissão de títulos para distribuição (PDF).

On any given month, the top 5 publishers (Marvel, DC, Image, IDW and Dark Horse) make up approximately 80% of the comic books sold in the direct market. DCD services between 3000-3400 retailers on a given month and new publishers can expect their initial sales of their comic book to average between 1000 and 2000 copies while graphic novels will typically sell an average between 100-300 copies.

É esta a realidade e a verdade sobre este “monopólio” e “influência global”. Por outras palavras, qualquer editor português designadamente os das “grandes tiragens”, ou seja entre os 300 e 500 exemplares (inteirinhos) podem submeter livros para distribuição. Convinha, apesar de tudo, ler a secção “Before You Submit”, não vá o plano de negócios revelar-se fraco. E não esquecer que há conceitos completamente estranhos ao editor português — Does your company have a long-term publishing plan for content over the next 2 years? — long-quantos? O meu inglês não é assim tão bom.

Marcos Farrajota
Uma obra extraordinária, no melhor local do nosso balcão, rodeada de todo o tipo de “lixo” eclético. O inverso também será verdade.

Como uma anedota nunca vem só, este papa-fina conta mais algumas, como se percebesse alguma coisa de livrarias.
Segundo a homilia, “basta consultar as redes sociais das lojas portuguesas – das mais “comerciais” às mais “ecléticas” – para perceber que só comunicam para um tipo de leitor, o “nerd”, alienando todos os outros, num óbvio incentivo à monocultura de mais um chuto”. Por partes… e se for ao contrário? Se calhar são os editores da treta e de grande treta, que tratam os potenciais leitores por “zombies mensais”, que os “alienam” e os atiram para os braços dos super-heróis, sei lá!
Das mais “comerciais”, refere-se a duas. Às mais “ecléticas”, refere-se a uma — a Mundo Fantasma, sempre há um alvo, ou três. É um mercado enorme, um império, que vale a pena ser acusado, condenado e de preferência executado sumariamente. O timing também é perfeito, enquanto tentamos sobreviver, temos este ingrato às portas com os mesmo cheap shots dos últimos 20 anos, mas todo contentinho com “a queda do império americano” e naturalmente com ele próprio, deve ter o salário garantido.
Quanto à tal “monocultura de mais um chuto” — passando à frente a elegância da linguagem —, não o saberia reconhecer, porque nunca fumei nem tabaco nem qualquer outra coisa e nunca chutei nada que não fosse redondo e relativamente parecido com uma bola. Nos últimos 29 anos, o meu vício tem sido trabalhar, como muito bem sabe quem me conhece até superficialmente. Os nossos amigos e clientes não são viciados em nada que não seja a leitura saudável daquilo que escolhem comprar com o seu próprio dinheiro. Era o que faltava. Divinos educadores é noutras paragens e noutros regimes.

Este luzido sabe perfeitamente que são as tais cinco editoras que pagam tudo aqui — independentemente dos nossos desejos e gostos pessoais. Ainda acrescentamos as editoras de mangá, que transformaram uma livraria de clientela quase exclusivamente masculina, numa livraria onde as mulheres são quase 50% das visitas — que tal como os outros, adquirem livremente o que desejam. A causa da “diversidade de género”, ou o mangá como “bibliodiversidade”, sem educadores, imposições ou quotas, não parece interessar a estes videntes das quedas de impérios. Só eles sabem o que os outros devem ler.

Marcos Farrajota
Exposição de Marcos Farrajota em 2015 a ser apreciada por um eventual “zombie mensal”. Podia ter-se chamado “O Império Financia”.

Por exemplo, a nossa galeria, que durante 12 anos divulgou um sem número de autores (edição de 10º aniversário) em mais de 100 exposições e outros eventos, tem sido integralmente sustentada pelos super-heróis. Até a exposição do áureo artista chamado Marcos Farrajota, conhecido localmente pelo rasgo do traço e abundante utilização de delicadas metáforas, foi integralmente alimentada graças ao tal “império”. Não foi, de certeza absoluta, com a venda das publicações e opíparos originais do autor que se pagaram as despesas. Mesmo nos últimos anos, sob responsabilidade do atelier 3|3 (insuspeito de fazer parte do “círculo vicioso”), quem continuou a pagar todas as realizações foram os tais “zombies mensais”. É isso que nos permite ter a porta aberta, ponto final.
Se de vez em quando editamos um (Hitchhiker) ou outro livro (Cinzas), é aos mesmos que estamos agradecidos. Se nas prateleiras podemos ter milhares de livros (sim, milhares) que vendem um exemplar às vezes, é aos nossos amigos e clientes que estamos gratos. Esta livraria foi construída por eles e para eles. Não é para cicerones de causas perdidas que aqui não gastam um cêntimo, a quem compramos todos os livros que editam e ainda chateiam por cima. Arre-burro.

Obviamente que quem fala assim das livrarias dos outros, não é gago. Educadores deste gabarito começaram naturalmente pelo Robert Crumb e vieram sempre a descer por aí abaixo. Eu não. Comecei nos patinhas e foi sempre a subir por aí acima, Crumb foi para mim uma revelação — ninguém me “educou”, porque posso não perceber patavina de banda desenhada, mas sei do que gosto. E cada um é que sabe de si, mas se eu fosse leitor de banda desenhada e me chamassem “zombie mensal”, era menino para não comprar nada da associação Chili Com Carne ou da editora Mmmnnnrrrg (já falecida, naturalmente por causa dos “zombies mensais” e das livrarias) se hipoteticamente este cicerone fosse o responsável por essas edições. Em bom rigor, numa crise como esta, a banda desenhada não é um bem de primeira necessidade, como o papel higiénico. Se é para açambarcar, que seja macio e de folha dupla. É a minha opinião.

Fearless Colors

Fearless Colors

Esta publicação compila algumas das melhores páginas de BD que Samplerman produziu entre 2012 e 2015. Pode-se dizer que elas fazem homenagem aos “comic-books” norte-americanos dos anos 40 e 50, sendo misturados tal como uma viagem de um DJ a realizar o que Marcos Farrajota intitulou de “Comix Remix” — artigo escrito originalmente para o jornal finlandês Kuti.
Atravessando géneros clássicos como o romance cor-de-rosa, o policial, a ficção científica e o terror, algumas das páginas tanto se identifica excertos de Fletcher Hanks como o “Samplerman original”: Ray Yoshida. Violência, acção, disparos, naves espaciais, micróbios e bactérias, corpos mutilados são remontados numa colagem fractal que nos possibilitam novas formas de narrativas e leituras.
Por detrás de um super-heróis há sempre o alterego. Neste caso de Samplerman esconde-se o desenhador francês Yvang. Começou com a experiência Samplerman em 2012 através do tumblr ZDND (La Zone De Non-Droit) juntamente com o irrequieto Leo Quievreux, tendo contaminado a web desde então. Participou em várias publicações como a š!(Letónia), Off Life, Smoke Signal, Ink Brick, Lagon, The Village Voice e Scratches. A solo sairam os seguintes livros: Street Fights Comics (ed. de Autor, 2016), Miscomocs Comics (Le Dernier Cri, 2017), Samplerman (Secret Headquarters, 2017) e ilustrou ao LP colectênea Intrepid Curves #18 da Vinyl Moon.
O autor vai estar em Portugal Sábado, dia 10 de Março, na nossa livraria, pelas 17h00, para sessão de autógrafos. Dia 16 de Março, em Lisboa, na Nouvelle Librarie Française, com apresentação do livro Fearless Colors, uma edição MMMNNNRRRG. Absolutamente a não perder.

Megg, Mogg e Mocho

Argumento e desenho de Simon Hanselmann. MMMNNNRRRG, 2016.

Um dos acontecimentos mais bizarros da banda desenhada norte-americana em 2016 foi a usurpação da personagem Pepe, criada por Matt Furie, pelo movimento de extrema direita “alt-right”, fundamental à ascensão política de Donald Trump.

Criado em 2005 para a série Boys Club, Pepe era, desde 2008, um dos memes mais populares da internet, na sua expressão mais sorumbática (feels bad man / sad frog). Desde o momento em que a primeira vinheta foi apropriada, o desenho recebeu novo corpo, cores, expressões, e claro, legendas. Antes ícone da bacanidão, começou a aparecer de suástica, avatar de boquinhas xenófobas e cruzados anti-”politicamente correcto”.

Boys Club é uma stoner comedy, ou, uma celebração de zé-ninguéns a pastar erva fechados em casa, rapando comida de pacote, kitsch televisivo, e videojogos, com uma perninha de sublime espiritual à décima-quinta hora da moca. O género literário é atreito a autocolantes geracionais de gozo das aspirações dos papá —“memes”, como se diz na vulgata — mas a instrumentalização política de coisa tão afável chocou pelo impudor.

Pode uma stoner comedy ser mais do que tshirts para bros e entretém de sessões de bongo? Pode. Prova disso é Megg, Mogg e Mocho, agora editada pela MMMNNNRRRG: tão janada como a outra, mas no seu estupor, crónica negativa de um autor crescido no buraco do cu que é a Tasmânia, com ganas de se travestir, e de carreira tardia (só decide dedicar-se a sério na roda dos 30).

Tal como Boys Club, MMM tem animais falantes, talvez o único mandamento ditado a Moisés atinente à banda desenhada, e segue a estrutura de uma “sitcom”, com piadolas típicas da intersecção espacial intrafamiliar ou de vizinhança patente nas séries americanas de e para gente sentada. Por vezes há expedições ao “lá fora”, fantasmático, esparsamente povoado por polícias, parolos, e normalóides.

Megg e Mogg, com duplos “gs” para não infringir os direitos do casal bruxa-gato que protagonizava uma série infantil dos anos 70, vivem numa interminável stasis que não se percebe se é determinada pela longa depressão de Megg, se pela falta de elegibilidade de Mogg no centro de emprego. Partilham casa com o Mocho, um idiota normativo que insiste em “levantar-se cedo para ir trabalhar”, “poupar dinheiro”, ou “arranjar uma namorada”, logo, alvo de humilhações rituais. Para dar um exemplo, quando o Mocho faz anos, o presente dele é ser “violado”, revelando que os seus laços de sociabilidade são provavelmente um indício de síndrome de Estocolmo.

A corte de Megg e Mogg inclui um quarto personagem, raramente com honras de título, mas fundamental para se perceber a dinâmica de grupo: o Lobisomem Jones, um fura-vidas com demasiada pica que aparece sempre a tempo de mandar a casa abaixo com a) concursos de nojeira, b) novos e experimentais cocktails de drogas e álcool, c) os seus filhotes horríveis e irrequietos, ou d) parafilias. É sempre ele que vai mais longe que os outros, e não é raro continuar a exibir-se quando já não lhe dão atenção. Com ele a stoner comedy torna-se uma variante obscura de performance art.

Os episódios de Megg, Mogg e Mocho representam um período de especialização artística. Hanselmann brilha em condições de claustrofobia visual, e a pouca evolução a que podemos assistir só diz respeito ao refinamento da técnica. Está sempre lá a grelha rígida, uma arrojada vinheta de título, o jogo entre close-up e plano americano típico da tv, e mais importante, a cor de pincel.

A cor, pelo preço, nunca dá jeito à publicação independente, e quando há, é porque no artista, traço e cor são inseparáveis. Hanselmann utiliza uma caixinha de aguarelas, preenchendo dentro da linha do lápis (noutra camada), e deixa borrar livremente dentro do contorno. Nesta aguarela, a tinta nunca tem a espessura do pastel ou do óleo, logo, não resiste à digitalização e contribui para um resto matérico na página final. Isto, tanto com o conteúdo, torna-se uma espécie de Real lacaniano na era do digital certinho.

Na Alemanha, Fraça, ou Espanha, publicam Hanselmann em formato álbum com algum luxo. Por cá, temos uma edição mais modesta com pouquíssimo eco, embora realize uma experiência importante no panorama nacional. Face ao tradicional pindérico do calão traduzido, usa português corriqueiro e sabujo, uma linguagem fluída que regionaliza o original, um ersatz tipo Dragonball Z.

As historinhas neste volume são uma selecção mais curta do que veio a ser o mono da Fantagraphics chamado Megahex (já continuado em Megg, Mogg and Owl in Amsterdam, 2016). Parecem regressar circularmente à origem, mas esporadicamente adivinha-se um desastre. Sabemos, lendo uma história ausente deste volume, que o Lobisomem Jones cometerá suicídio no Natal de 2017. Que podemos fazer de corolário tão medonho? Talvez MMM tenha todas as virtudes da tragédia: a audiência só se conhece pela catarse. Venham daí esses monstros todos!