O legado dos grandes colorista das épocas de ouro, prata e bronze dos comics americanos está a ser sistematicamente apagado pela forma descuidada como esses comics são re-coloridos e reeditados, maioritariamente pelas editoras principais. Isto é particularmente infeliz para os artistas que coloriam o seu próprio trabalho como Barry Windsor-Smith, Neal Adam, Tom Palmer ou Klaus Janson. E ainda mais para mulheres pioneiras como Glynis Wein e Marie Severin que coloriram com sensibilidade uma miríade de histórias de banda desenhada. As cores berrantes das reedições não representam de forma nenhuma a aparência que estes comics pretendiam. Destoem a harmonia cromática e eliminam a ambiência. É uma vergonha e no entanto estamos neste pé.
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Imagem independente
A Image Comics é uma editora americana de comics e novelas gráficas criada em 1992 com o intuito de possibilitar aos criadores um meio de publicar os seus trabalhos sem perderem os direitos autorias sobre as personagens e histórias que criavam, como era prática na época, e ainda é, na Marvel Comics e na DC Comics.
Fundada originalmente por sete artistas vindos da Marvel: Todd McFarlane, Jim Lee, Rob Liefeld, Erik Larsen, Whilce Portacio, Marc Silvestri e Jim Valentino, todos os primeiros títulos da Image foram sucessos comerciais imediatos, tornando-se desde então numa das maiores editoras de comics do EUA, com um catálogo repleto de bons autores e grandes títulos mas também com o que de pior se podia encontrar nos comics de super-heróis nos anos de 1990.
Neste ponto a Image conseguiu subverter e generalizar um estilo de narrativa visual cuja origem atribuo a Neal Adams, em particular na sua Continuity Comics, a editora que criou em 1984 e que esteve activa até 1994. Escrevo subverter porque muitos dos desenhadores publicados pela Image, ou melhor, pelos diversos selos editoriais que a editora agregava, pareciam desenhar em papel vegetal sobre as pranchas de Adams, eliminando cenários e o que de real ainda continham os seus desenhos e acentuando a musculatura dos personagens masculinos, o “erotismo” das personagens femininas, o tamanho das armas e o nível de violência e sangue derramado, sendo Rob Liefeld um mestre nestas “inovações”.
Enquanto escrevia este artigo reli alguns dos títulos que fizeram mais sucesso: Spawn, WildC.A.T.S., Supreme ou Youngblood, tarefa essa que se tornou rapidamente entediante tal é a confusão visual e a pouca qualidade dos argumentos, sendo esta uma das críticas recorrentes na época. As várias polémicas geradas inicialmente pela gestão duvidosa da editora ou o uso agressivo de técnicas marketing e publicidade, que se tornaram na época standards da indústria, principalmente nas capas artilhadas com diversos truques visuais: hologramas, pop-up’s, capas variantes ou que brilham no escuro, também não ajudaram ao bom nome da editora, sendo esta acusada de apenas publicar lixo visual para adolescentes.
No fundo os sete rebeldes apenas queriam o legítimo retorno financeiro que as suas criações poderiam gerar e não apenas serem pagos à página como acontecia na Marvel, apesar dos títulos onde participavam venderem milhões de exemplares, batendo mesmo recordes — McFarlane em Spider-Man, Jim Lee em X-Men ou Rob Liefeld em X-Force — e os royalties serem quase inexistentes.
Mas com o tempo, e com o fim da musculada década de 90, a Image foi-se consolidando como editora e passou a ser considerada por diversos autores, já estabelecidos ou em início de carreira, como um meio viável e de reconhecida qualidade para publicar as suas criações mais pessoais, entre os quais Hellshock por Jae Lee, Astro City por Kurt Busiek, Brent Anderson e Alex Ross, Bone por Jeff Smith, Kabuki por David Mack, o universo 1963 escrito por Alan Moore ou The Walking Dead por Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard, este um conhecido e reconhecido sucesso comercial e artístico ainda em publicação.
O ano de 2008 seria um ponto de viragem para a editora ao contratarem Eric Stephenson para o cargo de Publisher. O discurso que proferiu em Fevereiro último no encontro em Atalanta dos membros da ComicsPro, uma associação de retalhistas de comics, é um bom exemplo da sua visão sobre a indústria e sobre o passado recente, o presente e o futuro da Image, onde um dos objectivos principais é diversificar as temáticas e estilos dos títulos publicados para alcançar outros públicos pouco ou nada habituados a lerem comics, e isto não com produtos derivados de séries de televisão ou filmes mas sim através da qualidade narrativa e gráfica das histórias.
Neste últimos anos, e como consequência desta abertura, uma série significativa de bons autores começou a publicar através da Image e desses destaco Ed Brubaker (poderia bem ser Howard Chaykin com o seu Black Kiss ou Satellite Sam com Matt Fraction, mas Chaykin merece um texto só a ele dedicado) e os seus mais recentes títulos: Fatale com Sean Phillips e Velvet com Steve Epting, ambos exemplarmente coloridos por Bettie Breitweiser.
Brubaker, agraciado já por cinco vezes como Melhor Argumentista nos prémios Harvey e Eisner, é um dos meus escritores favoritos e um dos melhores a escrever séries negras e de espionagem, a reinventar super-heróis, ancorando-os em cenários credíveis e baseados na nossa realidade ou a criar personagens com passados misteriosos e conturbados. Não admira por isso que Brubaker atribua a sua vontade precoce de escrever histórias ao facto de ter acompanhado a sua mãe a encontros dos AA enquanto criança.
Fatale é uma série negra com contornos sobrenaturais que relata a vida de Josephine, uma mulher fatal, aparentemente imortal — a narrativa decorre entre os anos de 1950 e 1990 — com a capacidade involuntária de manipular a vontade dos homens, ficando estes obcecados por ela. Sem surpresa, essas relações geralmente acabam mal até porque um sinistro culto que idolatra deuses cósmicos lovecraftianos persegue a Jo.
Publicada desde 2012, Fatale teve várias nomeações em 2013 nos prémios Eisner é a quarta série escrita por Brubaker e desenhada pelo talentoso Sean Phillips editada pela Image, depois de Sleeper, Criminal e Incógnito. A série terminou em Julho último com o número 24 mas a equipa criativa já iniciou em Agosto a publicação de mais um projecto promissor: The Fade Out, uma história policial negra — claro — que tem como cenário a Hollywood dos anos de 1940.
Velvet é a mais recente colaboração de Brubaker com Steve Epting depois das suas aclamadas passagens por Captain America, onde devolveram ao herói o clima de espionagem e intriga internacional dos anos 70, em particular na fase curta mas seminal de Jim Steranko. E aqui essa influência volta-se a sentir mas agora centrada numa personagem sem super poderes e considerada por Brubaker como uma das suas criações favoritas: Velvet Templeton, a assistente pessoal do Director da Arc-7, uma agência secreta de espiões, que se vê envolvida numa teia de mistérios, a começar pelo seu próprio passado.
Steve Epting, influenciado por Jim Holdaway (Modesty Blaise), Al Williamson (Secret Agent X-9) ou Stan Drake (Kelly Green), desenha Velvet como uma mulher de aspecto clássico, elegante e atraente mas duro, a fazer lembrar a curta interpretação, para mim definitiva, de Natasha Romanova, a Black Widow, de Paul Gulacy (Bizarre Adventures nº 25, Marvel, 1981, argumento de Ralph Macchio) ou mesmo a Contessa Valentina Allegra de la Fontaine. Epting tem aqui neste argumento de Brubaker os elementos ideais para canalizar todo o seu talento ainda pouco reconhecido.
Se perderam os primeiros números, ambas as séries encontram-se disponíveis também em TPB pelo que recomendo vivamente a sua leitura.
André Azevedo escreve habitualmente no blogue A Garagem.
Cinco comics que fazem parte da minha vida
Quem acompanha – mesmo que ocasionalmente – o que vou escrevendo, sabe que os comics de super-heróis nunca foram o meu género de eleição. Mesmo assim, deixo de seguida uma lista de cinco histórias sem as quais eu não seria o mesmo leitor.
Da minha infância/juventude, tenho memórias esparsas das revistas de super-heróis que li. Tenho uma vaga ideia de revistas brasileiras (da Ebal?) a preto e branco e grande formato — Marvel ou DC? — vistas em casa da minha madrinha; recordo uma ou duas edições do Homem-Aranha, da Agência Portuguesa de Revistas, que tive; lembro uns formatinhos (emprestados) deste mesmo herói; evoco duas edições brasileiras de melhor qualidade – Superman e Lanterna Verde/Arqueiro Verde, que ainda estão algures aqui por casa – compradas num pacote-mistério ((Nos anos 1980/1990, em Portugal, havia sobras de revistas de BD que não eram destruídas; eram vendidas mais tarde, em envelopes surpresa, com exemplares sortidos.)).
E, no que aos super-heróis diz respeito, no formato papel, pouco mais…
Até que, em 1983, pela primeira vez, uma BD de super-heróis marcou-me profundamente, sendo mesmo uma das que “me fizeram dar o salto da BD infanto-juvenil de aventura e humor para uma outra de temática mais adulta” ((Citando o que escrevi há dias, a propósito das 50 edições de BD que fizeram de mim o leitor que sou hoje, em 50 Anos, 50 Edições: (II) 1983-1985)).
Era a primeira parte de Snowbirds don’t fly, uma aventura da dupla Green Lantern/Green Arrow, em que este último descobre que Speedy é um drogado. Lida nas páginas do Mundo de Aventuras – revista em que fiz a minha formação aos quadradinhos – mas nunca concluída, deixou-me durante (muitos) anos suspenso do seu desfecho.
Teria ainda de esperar pelo final dos anos 80, quando vi na montra da Bertrand, no Centro Comercial Brasília, uma edição que me chamou a atenção. “O primeiro impacto surgiu pelo aspecto diferente”: era a edição brasileira, formato comic, da Editora Abril do primeiro volume de The Dark Night Returns. Depois, “o traço e a fabulosa história de Miller fizeram o resto…” ((In 50 Anos, 50 Edições: (III) 1986-1993))
Foi a partir daí que comecei a prestar mais atenção ao género e, mesmo não me tendo tornado um grande leitor de comics, vou tentando acompanhar o que de mais interessante – do meu ponto de vista… — vai acontecendo.
É por estas razões – e outras mais – que estas duas histórias estão na lista de cinco comics de super-heróis que fazem parte da minha vida e sem os quais eu não seria o mesmo leitor.
Green Lantern/Green Arrow: Snowbirds don’t fly
De Denny O’Neil e Neal Adams. Datada da década de 1970, está incluída num arco mais largo que representam um dos primeiros e maiores expoentes de realismo que os comics de super-heróis já assumiram. Com os Estados Unidos vergados ao pesadelo da guerra do Vietname, e com a sombra dos assassinatos de John Keneddy e Martin Luther King, O’Neil e Adams levam os seus heróis numa viagem por uma América profunda, repleta de contrastes e de podres, bem longe dos ideais de igualdade do sonho americano e das divisões absolutas bem/mal ou certo/errado com que Green Lantern via o seu mundo.
Batman: The Dark Night Returns
De Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley. O regresso de Batman após dez anos reformado, para fazer face à corrupção crescente e a um bando que aterroriza a sua sempre querida Gotham, num espelho do desencanto americano com a governação Reagan, mostrado como uma caricatura nesta obra.
Uma história dura, violenta, explosiva, narrada a um ritmo absorvente, pautado pela cadência da informação televisiva que vai conduzindo o relato e mantendo o leitor a par das diferentes evoluções e pontuada por momentos fortes – como o combate com o líder mutante na lixeira ou o confronto Batman/Superman.
Se a violência nela mostrada pode hoje ser considerada normal, quando The Dark Night Returns surgiu nunca tinha sido visto nada assim nos comics e estes nunca mais foram os mesmos.
Daredevil: Born Again
De Frank Miller e David Mazzucchelli. Uma das raras bandas desenhadas que comprei nos formatinhos brasileiros, é uma obra complexa e muito estruturada, assente na exposição controlada de emoções e com uma violência invisível mas latente, rara em histórias de super-heróis, devida ao tom extremamente realista que exibe.
Born Again é o relato da queda de Daredevil/Matt Murdock, perdendo namorada, amigos, emprego, identidade ou posição social, devido a um plano de vingança de Kingpin, mas vai bem mais além disso, transfigurando-se na narrativa da redenção do herói, mais forte e mais capaz, numa notável declaração de humanidade e de confiança no melhor do ser humano.
Frank Miller – que passei a acompanhar depois de The Dark Night Returns — constrói uma narrativa forte e densa, com intervenientes marcantes, bem acompanhado no desenho e na planificação por David Mazzucchelli que explana o tom sombrio da narrativa e a escuridão que Murdock foi obrigado a atravessar.
Superman: For All Seasons
De Jeph Loeb e Tim Sale. Esta mini-série seduziu-me primeiro pelo traço límpido e fino de Tim Sale e pelas cores claras e quentes que o servem – mais próximos da BD franco-belga que é a minha praia…?
Depois – mas mais importante – veio a história de Jeph Loeb. O recontar da origem de Superman, num relato que oscila entre este e o pacato e crédulo Clark Kent, na passagem de Smalville para Metropolis, através das relações fortes que estabeleceu com os que lhe eram mais próximos, num percurso iniciático em que foi descobrindo as suas forças mas, também, principalmente, as suas fraquezas e as suas limitações, para aprender a superá-las, antes de se transformar no maior herói da Terra.
Marvels
De Kurt Busiek e Alex Ross. O relato do aparecimento dos primeiros super-heróis Marvel, vistos tanto como “maravilhas” – no trocadilho com o original “marvels” – quanto como ameaças para os cidadãos comuns, pelo olhar apurado e competente de um fotógrafo rendido aos novos seres.
Narrativa humanizada das histórias de super-heróis tradicionais, balizada por momentos fortes da história dos comics Marvel, é extremamente valorizada pelo traço híper-realista de Alex Ross que confere outro impacto e força à bem urdida história de Kurt Busiek.
Pedro Cleto escreve habitualmente no blogue As Leituras do Pedro.