Argumento e desenho de Wallace Wood. Fantagraphics, 2015.
Alguma coisa deve ter corrido mal: o futuro a que chegámos não é o futuro que nos prometeram. Desconfio que isto já é conversa antiga para quem está a ler, mas o regresso do Marty McFly a 2015 pôs a Internet em revolta. Acordámos dia 21 de Outubro, olhámos pela janela fora e constatámos que não existem carros flutuantes, hoverboards nas ruas ou roupa que se ajusta a qualquer tamanho. Fomos tomados por uma euforia com contornos vagamente dissociativos, entre a nostalgia por um imaginário passado e a expectativa de um futuro que entretanto chegou (desculpem-me o silenciamento estratégico de quem não passou por esta experiência).
Tendo em conta os hábitos de Hollywood, é surpreendente que ainda não tenha surgido uma nova versão do Back to the Future para capitalizar o hype. Mas como é que se faz futurismo em 2015? Julgando pelo recente The Martian, não se faz. Em vez do futuro e do Michael J. Fox, teríamos o Michael Cera com tatuagens a sonhar com a cultura pop dos anos 80. Como poderia ser orquestrado este golpe? Ou seja, que acontecimentos resultariam na criação de uma realidade paralela, em que o futuro é aborrecido? Olhando para o nosso mundo, podemos correlacionar o nosso extravio temporal e a estranha realidade em que vivemos com agentes históricos que não foram contemplados pelo Back to the Future II.
O antropólogo David Graeber sugere, por exemplo, que várias das promessas da ficção científica para o século XXI eram tecnicamente alcançáveis e que só ainda não se cumpriram porque as condições sociopolíticas não o permitiram. No seu lugar, desenvolvemos tecnologias essencialmente burocráticas que reforçam as desigualdades sociais existentes e que em pouco contribuem para o despontar luminoso da civilização intergaláctica. Por outras palavras, ainda não colonizámos Marte porque preferimos criar a iTunes Store. Para um reboot bem sucedido, basta ter isso em conta.
A hipótese de Graeber é apoiada pelas histórias de sci-fi em Spawn of Mars and Other Stories. Nelas abundam naves espaciais e máquinas do tempo, sem que apareça um único smartphone. Este volume pertence a uma série dedicada a clássicos da editora EC Comics, mais conhecida por chocar e atrair as atenções da classe média americana dos anos 50 para os perigos da banda desenhada. Spawn of Mars… é relativamente moderado no shock value. Dedica-se a comics de sci-fi ilustrados por Wallace Wood, escritos maioritariamente por William M. Gaines e Al Feldstein para as revistas Weird Science e Weird Fantasy.
As personagens desta colecção deparam-se com problemas próximos dos nossos, como o esgotamento dos recursos naturais, a guerra e a sobrepopulação. A exploração espacial é geralmente a resposta encontrada para estes desafios, pelo que Spawn of Mars… não apresenta soluções particularmente inventivas (admito que quaisquer outras hipóteses parecerão supérfluas se pudermos simplesmente fugir do planeta Terra).
O avanço tecnológico destes futuros paralelos parece, portanto, ter divergido do nosso a determinado momento. Como consequência, os conceitos explorados nestas histórias parecem mais desadequados do que propriamente antiquados. Podemos dizer que os cenários altamente especulativos e por vezes patetas de Spawn of Mars… — que incluem cientistas a trabalhar na cave, andróides militares emprestados para fins domésticos e mulheres engravidadas por extraterrestres —, funcionam numa lógica de suspensão das regras que desafiam o senso comum e promovem o pensamento lateral. Neste sentido, o recurso frequente a retóricas pseudocientíficas não é (só) um defeito, mas também uma necessidade quando se querem criar situações altamente improváveis.
Este efeito é apontável, por exemplo, em Transformation Completed. Nesta história de seis páginas, um soro experimental permite a transição total entre o sexo masculino e o feminino, e vice-versa. No cenário proposto, a determinação biológica da identidade e orientação sexuais é, ao mesmo tempo, absoluta e completamente fluida: alguém com uma anatomia e identidade masculinas que é sujeito a este tratamento, transformar-se-á física e psicologicamente numa mulher. Deste modo, as características identitárias são contingentes a condições biológicas que são elas próprias transitórias, colocando a questão transgender de pernas para o ar (de forma certamente problemática, mas por isso mesmo interessante).
Há outros conceitos que são explorados, como o amor inter-espécies (nas histórias Spawn of Mars e The Maidens Cried), as consequências práticas da imortalidade (The Two-Century Journey), paradoxos temporais e os perigos de tecnologias como a teleportação ou a mais corriqueira energia nuclear. A maioria das histórias recorre a twists e inversões de posição que obrigam o leitor a confrontar-se com o seu próprio reflexo, mas que são mais ou menos previsíveis para uma audiência actual (“afinal, éramos nós os extraterrestres,” “estamos para os extraterrestres como o gado está para nós”, etc.; talvez já fossem previsíveis quando foram publicadas?).
Como conjunto de ficções especulativas, Spawn of Mars… é uma curiosidade histórica e uma panorâmica sobre futuros que se tornaram tangentes do passado. Como conjunto de obras de banda desenhada, representa uma amostra do trabalho do artista Wallace Wood e é por aí que o seu interesse se eleva. Como era comum nos comics da época, cada história inicia-se com uma grande vinheta titular. Wood usa-as para estabelecer a atmosfera geral da história e exibir a extensão das suas capacidades técnicas. Muitas destas vinhetas poderiam até existir como ilustrações autónomas ou posters, cheios de pormenores da tecnologia, da fauna e da flora extraterrestres que convidam à exploração pelo olhar. A expressividade com que Wood representa estes pormenores em tinta da china e screentones—os reflexos e brilhos do metal que dão volume às naves espaciais e as formas tortuosas da vida alienígena que fazem lembrar, por razões certamente genealógicas, as criaturas abjectas de Chris Weston em The Filth — são o segredo do negócio e poderiam também ganhar autonomia para lá das histórias em que aparecem. Se retirássemos a trama e os personagens e reduzíssemos tudo a imagens, poderíamos chegar a uma sci-fi superficial em que o grafismo seria um fim em si mesmo, de forma semelhante ao que vemos em autores contemporâneos como Yuichi Yokoyama ou Léo Quievreux.
A vontade de extrair as imagens do seu contexto é exacerbada pelo design das páginas que, numa primeira análise, sofrem com uma negociação pouco cuidada entre imagens e texto. As histórias recorrem demasiado a descrições verbais maçudas e o texto acaba por controlar o espaço da página. Por consequência, as imagens ajustam-se de forma grosseira a grandes blocos de texto expositivo ou a balões de fala encavalitados. Neste sentido, não foge à norma da maioria dos comics seus contemporâneos. Mas estou disposto a dar o benefício da dúvida e argumentar que esta submissão da imagem ao texto poderá conferir um valor estético específico aos comics desta era, que merece ser reapreciado. Talvez este tipo de relação entre imagem e texto possa ser recuperado em experiências futuras de banda desenhada. É um morto por ter cão e morto por não ter, mas na positiva.
Spawn of Mars… reflecte uma cultura popular mais investida numa ideia do futuro do que a nossa. No entanto, este livro não servirá como referência do futuro (afinal, o futuro, para nós, já chegou). Para mim, servirá de referência para o futuro: um registo do que poderá ser e do que poderia ter sido.