Argumento de Grant Morrison, arte de Yanick Paquette. DC Comics, 2016.
Ore-se baixinho como a lista de assassinatos de Arya Stark: Batman, Super-homem, Mulher Maravilha. A Santíssima Trindade da DC Comics, os bons velhos amigos, a competição perfeita, e por vezes, um triângulo amoroso. Se há cinquenta anos os primeiros dois eram World’s Finest, a moldura alargou progressivamente para acolher a Mulher Maravilha, e no filme de Zack Snyder, lá está ela a mediar as partes. Bonita, rica, guerreira, e contudo, apenas Xena-a-princesa-guerreira, tecido necrótico de um filme estéril. Que fazer com a personagem nos dias de hoje?
Nascida nos anos 40, Wonder Woman assemelhava-se mais a um produto de laboratório do que a um campeão de sweatshop criado por jovens turcos sem direito a sono. O seu criador, o psicólogo William Moulton Marston, pretendia dela um antídoto à literatura machista do seu tempo, levando muito à letra os estratagemas típicos de exercício de autoridade por parte de adultos em roupas de Carnaval. Em vez de explorar o “querer dominar” subjacente aos marmanjos com capas, explorou o “querer ser dominado”, propondo uma simpática heroína de cordas na mão, disposta a extrair a verdade dos criminosos com o doce à-vontade de uma dominatrix.
A Wonder Woman de Marston foi um sucesso. Como refere Gerard Jones em Men of Tomorrow, várias vezes vendeu mais que as suas contrapartes masculinas, a uma audiência maioritariamente constituída por rapazes (as raparigas preferiam o Super-homem). Porém, tal como muitas invenções da época, a proposta de Marston sofreu, por um lado, as consequências de mudanças na demografia e educação do leitor médio, e por outro, a imposição do Comics Code.
William Moulton Marston acreditava que a mulher, tendo o dobro dos “órgãos geradores de amor” e “mecanismos endócrinos”, tinha um papel salvífico, convicção manifestamente parva que caiu em desuso. Versões posteriores da personagem situaram a força da personagem noutro lado: na sua herança cultural, na segurança da sua sexualidade, nas suas qualidades emocionais, e na sua aptidão para desempenhar papéis semelhantes aos homens. O avião em que se movia, invisível para eludir o militarismo aéreo dos homens, tornou-se kitsch e camp.
Claro que kitsch, camp, e fetichismo são o sal e a pimenta de Grant Morrison. O escritor de Wonder Woman: Earth One especializou-se em revivalismo pós-moderno, opondo-se a tudo o que é cinismo, simplificação grosseira, e psicanálise de vão de escada. Em WW: Earth One, tal como nos seus cinco anos de Batman e no aclamado All Star Superman, o objectivo não é despir a heroína de tralha ridícula e démodé, mas antes justificá-la.
Quando os seus pares da Invasão Britânica se ocuparam da desocultação de tudo o que o puritanismo reprimira, Morrison preferiu os esquizofrénicos capazes de quebrar a 4ª barreira e denunciar a performatividade da ficção. Ser raptado por aliens (diz ele) ajudou a esta mundividência. Depois de uma fase “contracultural” na Vertigo, o grosso do seu trabalho passou a cantar feitos de “supertotems” capazes de ensaiar os nossos medos e aspirações. Se no final dos anos 2000 ajudava Mark Millar na escrita da Liga da Justiça em formato despótico e gingão (The Authority, depois The Ultimates) o militarismo pós-11 de Setembro levou a tendência demasiado longe, e Morrison preferiu escrever putos reguilas e as suas lutas de afirmação (Marvel Boy ou New X-Men).
A meio de década de 00, na fase em que chegou a consultor criativo máximo da DC Comics, dizia nas entrevistas que tinha um caderninho de cem páginas para orientar reboots dos superheróis mais obscuros, e nesses anos, muito deles foram feitos de acordo com este guião. O debutar de WW:EO anos depois dessa fase parece uma réplica sísmica, explicável pelo longo trabalho de preparação do livro. A série junta-se ao longo rol de monografias que a Marvel e a DC Comics ritualmente produzem para o chamado “público alargado”, recontando a história dos heróis centrais em versão actualizada. O projecto All Star teria já tido esta função, tendo Morrison produzido umas das melhores obras da sua carreira, All Star Superman. Ter-se-á gizado um All Star Wonder Woman, mas a oportunidade passou, e recupera-se agora em Earth One.
Morrison volta a colaborar com Yanick Paquette, num estilo a lembrar o anterior Bulleteer (2005). Em Bulleteer, uma rapariga tinha a pele coberta de aço por obra de um marido obcecado com superheroínas. A analogia da objectificação das celebridades na nossa cultura era martelada pelas poses GQ/Maxim pedidas a Paquette. Esse reportório é transformado pelo estudo atencioso do trabalho compositivo de J.H. Williams III em Promethea (1999-2005). Como tem sido hábito na DC Comics, a influência de Alan Moore nota-se mesmo no obverso: Morrison jamais faria igual Mundo de Sofia do ocultismo, mas experimenta uma cover pop.
Em WW:EO, toda a história é um longo flashback do julgamento da Mulher Maravilha. Porquê? Porque como é sobejamente conhecido, a semideusa desafia a hubris e entra em contacto com o mundo exterior, para lá da ilha mítica de Themyscira, onde só vivem mulheres guerreiras em relações lésbicas, e dos homens só se guarda história oral. Os motivos do desafio são ligeiramente diferentes; o confronto do contacto, porém, tem toda a carga política que estava na obra de Marston, e fala-se do Patriarcado como se fala do Gangue da Injustiça.
Além de retomar a obra de Marston avant la lettre, Morrison tenta um segundo passo. Se regressa a narrativa da “criança selvagem” cujas maneiras, ou falta delas, põem em questão a sociedade contemporânea, a introdução da gorda Beth Candy (revisitação de Etta Candy a parecer-se com a Beth Ditto dos Gossip), mostra como Wonder Woman se pode tornar locus de discussão de vários tipos de feminismo. A personagem era comic relief na versão de Marston, mas aqui serve de instrumento de crítica do austero ideal amazónico, perfilado por Hipólita, a rainha das Amazonas. Esqueçam a “morte do pai” freudiano. É preciso matar a mãe também!